domingo, 31 de dezembro de 2017

Nem tudo está perdido

Ontem – dia 14 – o bar de Ana estava em dia de festa. Era o dia do caruru anual oferecido a Santa Bárbara, a protetora contra os raios e tempestades, a Padroeira dos soldados, dos mineiros e de todos aqueles que trabalham com o fogo. Ana trabalha com o fogo, em frente do fogão. Ela é uma cozinheira de mão cheia que conquistou a clientela com a sua simpatia e seus pratos saborosos. Uma negra preta como carvão, do vozeirão alegre e bunda tão grande quanto o seu coração generoso. Sobre o nariz achatado, ela ostenta um par de óculos estiloso branco que se sobressai na negritude de sua pele lisa, e brilha em seu rosto juntamente com os dentes alvos como o branco do açúcar, doce como o seu sorriso.

A parte interior do bar de Ana é um lugar apertado e abafado, por isso as cadeiras e mesas ficam do lado de fora, num pequeno pátio a céu aberto e se estendem pela impessoalidade da calçada e da rua. O bar é uma daquelas construções que vão sendo feitas e recebendo melhorias aos pouquinhos ao longo dos anos, no improviso do dinheiro curto e sem conhecimento técnico. Uma viga de concreto muito baixa e que não precisava estar ali foi recentemente coberta de azulejos brancos por um pretendente de Ana, mas aquele serviço gratuito de pedreiro não foi suficiente para conquistar o seu coração desconfiado. Nos fundos do bar, um grande nicho iluminado com lâmpadas coloridas acolhe a imagem de Santa Bárbara de quase um metro de altura.

A clientela vai chegando e se cumprimentado, perguntam por fulano e cicrano, em sua maioria é gente da vizinhança que se conhece há tempo. Os frequentadores do bar são afeiçoados ao estabelecimento, pois ali eles se sentem como se estivessem em sua própria casa. É pra lá que vão depois de um dia longo de trabalho tomar uma cerveja geladinha para relaxar, é lá que assistem a partida de futebol do campeonato, num televisor ainda de tubo. É lá que marcam os seus encontros com amigos para levarem aquele papo. E quando aparece algum novato que não bate com o santo de Ana, ela passa a servi-lo com cerveja quente para que ele não volte mais, pois ali a arrogância e a impaciência são visitantes que não são bem-vindos. Uma placa de madeira pendurada à parede avisa: Traga a carne que o churrasco é de graça! É assim o clima do lugar. As poucas cadeiras e mesas não acomodam tantos convidados, então muitos ficam de pé do lado de fora formando grupinhos de conversa animada até a comida ser servida.

Já se foi o tempo dos carurus de preceito que os convidados só precisavam levar a fome e a gula, estes se tornaram raríssimos e muitos agora são apenas lenda. Para comer o caruru de Ana, o convidado tinha de aparecer com um quilo de alimento não perecível, mas este não era para abastecer a dispensa de Ana ou compensar-lhe pela despesa, que um quilo está longe de pagar todo aquele trabalho e despesas. Todo aquele alimento tinha um destino para uma causa nobre. Uma casa de acolhimento de crianças pobres do interior que vem a tratamento de câncer em Salvador foi adotada por Ana. O gesto pode ser uma gota de água no oceano, mas para aquelas crianças e suas famílias, aquele é um ato de amor ao próximo e de compaixão. Num país que vive o desencanto e espanto por seus líderes políticos, onde malas de conteúdo suspeito são carregadas às escondidas de um lado para o outro, onde se entra na carreira política para fazer carreira no ilícito, é um alento que à parte deste pântano que se tornou o ambiente político nacional, existam cidadãos que dão o exemplo que falta àqueles que jogaram no lixo o nosso voto. Obrigado, Ana, por me mostrar que nem tudo está perdido. Feliz ano novo a todos!


Rio Vermelho, 31 de dezembro de 2017.  

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Abraço de Um Estranho

Antes de sair para trabalhar, Casemiro olhava embevecido para a esposa Luíza e a pequena Elisa, suas duas preciosidades, razão de seu viver, como ele dizia. Ao olhar para elas, Casemiro se sentia um homem realizado por viver ao lado da mulher que tanto amava e ser o pai de uma criaturinha encantadora que lhe causava emoção, cada vez que ela lhe lançava um sorriso de alegria e abria os pequenos braços para ele, pedindo a sua atenção. Depois que fechava a porta de casa trás de si, Casemiro se benzia e tomava o destino para o trabalho.

Casemiro agora ia, satisfeito, pedalando para o trabalho. Depois de economizar por mais de um ano, ele conseguiu finalmente juntar o dinheiro necessário para comprar a tão sonhada bicicleta. Não era uma dessas que custam os olhos da cara, no entanto; verdadeiros artigos de luxo e inovações tecnológicas sobre duas rodas. Ao contrário, a bicicleta de Casemiro não possuía qualquer sofisticação, feita de material de qualidade, porém barato, custou-lhe menos que um salário, mas, para ele, trabalhador humilde, aquela aquisição foi uma grande conquista.

No entanto, nem todos foram os meses que sobrou algum dinheirinho que fosse parar na caixinha da bicicleta. E houve vezes que ele tirou da caixinha para pagar despesas imprevistas da casa. Mas Casemiro não se desesperava, ele era um homem de fé e paciente. Talvez esta sua fé fizesse dele um homem obstinado e muito trabalhador, quem sabe. Para realizar o seu pequeno projeto, que para uma pessoa sem recursos constituía num um grande investimento, ele também fez bicos aqui e ali.

Quem pensa que talvez uma bicicleta fosse um artigo de luxo, usado para o seu lazer, desconhece que Casimiro era um homem de bom senso. O rapaz fez as contas e calculou que indo pedalando para o trabalho, ele ia economizar todo o dinheiro do transporte no final do mês, não era pouca coisa. A economia ia ser guardada para os futuros estudos da pequena Elisa, para que ela tirasse um diploma universitário e tivesse oportunidades melhores que os pais, estava decidido. A bicicleta também teria outra utilidade: com ela, ele esperava fazer mais bicos como eletricista e encanador para poder dar mais conforto á sua família. Casemiro parecia que tinha tudo pensado e sob controle, ele só não podia realmente controlar o seu destino, como descobriu, de forma amarga, mais adiante.

Uma manhã a caminho do trabalho, depois de se despedir da esposa e filha e de se benzer, passou por aquela mesma rua de todos os dias. Esta era uma das vantagens da bicicleta, cortar caminhos para encurtar a viagem. No entanto, seu trajeto foi interrompido quando um garoto atravessou à sua frente apontando-lhe a arma. Apavorado, Casemiro entregou-lhe a bicicleta, aliviado por também não ter lhe entregue a própria vida. Mas aquele alívio foi uma impressão passageira. O garoto montou na bicicleta, que a muito custo Casemiro juntou dinheiro para compra-la, e antes de seguir o seu rumo, tirou de Luíza o amado marido e da pequena Elisa o pai carinhoso e orgulhoso que sonhava um dia vê-la uma doutora diplomada.

Um estanho que ia passando naquele exato trágico momento, correu para acudir Casemiro, estirado ao chão. Ajoelhou-se ao lado dele que teve folego para apenas lhe sussurrar um último pedido:

— Me abrace, estou partindo!

O estanho pegou Casemiro em seus braços e lhe deu um abraço de despedida. Foi a última vez que sentiu o calor humano.



Rio Vermelho, 3 de outubro de 2017.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Ave de Rapina

Ontem eu vi um gavião. Ele não voava alto no céu azul, vergando as suas longas e poderosas asas, como o fazem as aves de rapina. Sempre associo estas aves ao domínio de florestas e vastas planícies onde, de uma altura espetacularmente alta, ela é capaz de ver até um pequeno e incauto roedor, e lançar-se feito um dardo mortal em sua captura. No entanto, aquela ave de rapina plainava sobre a estreita extensão de areia que hoje leva o inusitado nome de Praia dos Complexados, aqui no Rio Vermelho.

Aquela visão me surpreendeu. Jamais vi uma ave daquela magnitude no domínio que são próprios das gaivotas e outras aves praianas, e que se alimentam de pequenos peixes e criaturas da areia. Aquele gavião era majestoso. As suas asas longas eram negras e uma plumagem branca com esparsas penas pretas cobria-lhe do peito ao pescoço como sinais. O bico afiado era amarelo igual à gema do ovo e toda a sua cabeça era preta como o capuz de um carrasco.

Mas o que mais me intrigava, era o que uma ave como aquela fazia numa praia. Eu nunca tinha visto um gavião na praia antes, pois sempre os associei às matas e aos campos. O gavião deu meia volta plainando até pousar sobre a areia. E ainda com as asas abertas, numa posição ameaçadora, soltou um agudo e alto pio. Algo lhe chamava a atenção ali próximo. Seu olhar arguto deixava os seus nervos em alerta. A cabeça mal se movia, focada no objeto de sua atenção. Em seguida, deu dois passos para frente, ergueu as asas novamente e lançou-se para um pouco mais adiante. E eu estava lá em cima da balaustrada observando curioso aquela sucessão de acontecimentos e ao mesmo tempo maravilhado com a presença do gavião solitário na praia.

A poucos quilômetros do mar, havia até a bem poucos anos uma região, que embora fosse povoada com casas, era em sua maioria tomada por frondosas árvores. Hoje é uma selva de altos prédios de apartamentos de alto luxo e o único verde que se vê são os dos carpetes no hall de entrada ou dos vidros das janelas. A floresta que era habitada por sabiás, curiós, cardeais, pintassilgos, pica-paus, corujas, gaviões, coelhos, lagartos, macacos, saguis, sariguês, jiboias, sucuris, só existe na memória de criança que eu fui, criada na liberdade das ruas do bairro, quando ia se aventurar com a turma de amigos naquele lugar fascinante por causa de seu verde no coração da cidade. O gavião trocou a floresta pela praia, e ao invés de morar no galho mais alto da árvore mais alta, foi refugiar-se na cumeeira de algum velho prédio nas redondezas. Triste sina.

Novamente o gavião abriu as asas e lançou-se sobre a presa que estava na areia à sua frente. Não pude perceber que bicho se tratava, pois, ao contrário da ave de rapina, a minha visão não é assim tão perfeita. Ele atacou-a com bicadas mortais antes de agarra-la com uma de suas presas e levantar voo. Voou baixo sobre o espelho da água do mar, margeando sempre a praia, ganhando altura, batendo suas asas lentamente como se fosse o senhor do tempo e do espaço. Por um breve instante, a minha visão se confundiu entre a ave e a superfície da água e eu o perdi de vista. Mas depois ele reapareceu num ponto mais alto e quando chegou próximo à igrejinha de Santana, ele fez uma curva em direção à terra e sumiu entre os casarões velhos e prédios do largo de Santana. Nunca mais o vi.


Rio Vermelho, 2 de maio de 2017

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Ar Puro!

O rapaz humilde subiu para o ônibus pela porta dianteira para não ter que pagar a passagem, numa ensolarada manhã. O dia estava quente, e não havia mais vestígios da tremenda chuva que aterrorizara a cidade dois dias antes. Pelo contrário, o dia começara com um mormaço mal humorado que se infiltrava entre as pessoas, principalmente daquelas que usavam o transporte público, era como viajar dentro de uma quentinha para cá e para lá. Para a satisfação dos passageiros, entretanto, aquele ônibus não estava cheio, havia cadeiras vazias.

Mas voltando ao rapaz. Ele chamou a atenção dos passageiros, cumprimentando a todos com a voz quase sumida de vergonha. Em seguida, ele disse o nome, chamava-se Gabriel, como o anjo, e que vinha do interior. Pedia uma ajuda financeira para comprar uma passagem de volta para o seu interior. Até ai, nenhuma novidade. Uma típica viagem de ônibus metropolitano, inclui a entrada, ao longo do trajeto, de um vendedor de água gelada, outro de canetas baratinhas, alguém pedindo doação para um centro de reabilitação de drogados, um cego, um poeta, um cantor, um baleiro oferecendo doces e salgadinhos, como o passatempo da viagem. Podem ter certeza, todos estes entrarão no ônibus em algum momento do dia. Mas o nosso Gabriel não tinha nada para oferecer além de ar puro!

Aliando-se aos maus-tratos do calor, um mau-cheiro inundou aquele ônibus. Um odor nauseabundo e intolerável. A inconfundível catinga de alguém que não tomava um bom banho há dias. A brisa que entrava pelas janelas abertas do transporte não refrescava o veículo, ao contrário, servia para disseminar aquele fedor democraticamente entre os desafortunados passageiros. E cada um se defendia como podia, faziam caretas de nojo e reprovação, uns cobriam o nariz e a boca com a mão, outros puxavam para cima a gola da camisa para usar como máscara, outros se abanavam. A origem daquele tormento estava no jovem Gabriel, o rapaz que pedia uma grana para voltar para a sua cidade, cheirava como um gambá. Talvez a sua incursão pela capital, em busca de uma oportunidade, tivesse sido um desastre, e o pobre rapaz nem teve sequer a chance de tomar um banho. Vindo de uma pequena comunidade onde talvez fosse alguém, ele só não passou invisível por causa de seu mau-odor. Qualquer um que chegasse à sua pequena cidade natal, seria acolhido com hospitalidade. E se por uma desventura, o visitante precisasse de um banho, não lhe faltaria um chuveiro com sabão e toalha limpa. Mas tudo é diferente num grande centro urbano, falta o olhar para o outro com solidariedade, é cada um por si.

Gabriel era um rapaz asseado, nunca deixava de tomar banho e vestir roupa limpa. Aquele seu estado momentâneo tirou-lhe o brilho, roubou-lhe a autoconfiança e a dignidade, fez sentir-se menor de tamanho. Talvez estivesse morando nas ruas desde então. Na Salvador, a capital da alegria. Mas ele estava triste, só queria voltar para a sua cidade.

Um cidadão sentado num banco do ônibus também se sentia incomodado. Não pelo terrível cheiro do Gabriel, mas por sua humilhação. Também viera do interior e recordou no rapaz as dificuldades que também vivenciara ao chegar na capital para tentar uma vida nova. Seus olhares se encontraram e foi como um chamado. Gabriel se aproximou até onde o outro estava sentado. Em sua trajetória, provocou caretas por causa de seu cheiro peculiar.

— Tome aqui esse dinheiro para sua passagem. – disse-lhe o homem. – E mais este outro para você tomar um banho na Rodoviária, para deixarem você embarcar. Boa sorte.

O rapaz agradeceu com os olhos marejados de gratidão. Uma senhora deu-lhe mais algum dinheiro para uma merenda. No ponto seguinte ele desceu, e todos respiraram aliviados.


Rio Vermelho, 13 de abril de 2017




sexta-feira, 24 de março de 2017

Lágrimas e Maresia

Sob os resquícios da desbotada luz alaranjada que banhava o mirante da Paciência, a moça, solitária, sentada encolhida num banco de madeira em frente à imensidão de mar, olhava indiferente para a magnífica paisagem no horizonte, no entanto, sem conter a profusão de lágrimas que escorriam borrando a sua maquiagem. Numa mão, ela segurava um smartphone com o qual trocava mensagens de uma longa e dolorosa conversa. A cada nova mensagem recebida, ela se desfazia em mais choro e soluços. Seus polegares trabalhavam ágeis e rápidos, e suas mensagens eram respondidas na mesma prontidão, como se ela e o seu interlocutor estivessem envolvidos num frenético videogame.

Ela lia as mensagens movendo os lábios, sussurrando cada palavra para melhor assimila-las. Em seguida, soltava um gemido e levava a mão até a boca, que se retorcia e ficava feia como a de uma velha, para sufocar o choro. A sua expressão de sofrimento contrastava com aquela magnífica tarde de final de verão. Em sinal de respeito, ou talvez por pura indiferença, as poucas pessoas que desfrutavam da tranquilidade daquele local e de sua vista panorâmica, fingiam que não percebiam nada.

Depois de quase uma hora naquele suplicio, por fim, as limitações da própria tecnologia deram um basta àquela discussão, quando o aparelho da moça ficou mudo, graças ao esgotamento de sua bateria. Ela ainda teve o ímpeto de agitá-lo, assim como fazem as pessoas  com um frasco de ketchup, na vã tentativa de aproveitarem até a sua última gota.

Ela resignou-se com a interrupção e olhou desesperançada para o oceano à sua frente, já indefinido pelo começo de escuridão. Naquele momento, um imenso transatlântico cruzava solitário a linha do horizonte, pontilhado de luzes cintilantes. Ela o observou com uma expressão triste e desejou estar a bordo, fugindo daquela angústia em seu coração. Faria qualquer coisa para voltar no tempo, para jamais ter se envolvido com aquele a quem amava e a fazia sofrer. Palavras duras foram ditas, verdades expostas, acusações foram trocadas numa onda sem fim de ressentimento. O relacionamento, em fim, tinha se acabado. Ela parecia ter envelhecido.

Dois dias depois, a mesma jovem reapareceu no mirante. Parecia que tinha mudado, apagado de suas lembranças aquele triste final de tarde. Havia um brilho em seus olhos e sua expressão era serena, parecia mais jovem. A maquiagem no rosto estava impecável. Desta vez, até contemplou o pôr do sol com uma expressão de admiração e contentamento, sentiu prazer em respirar aquele ar impregnado pelo cheiro de maresia e algas marinhas. Minutos depois, ela percebeu a aproximação de um vulto pelo canto do olho. E ao olhar para o lado, deu um sorriso aberto e levantou-se do banco para ir se aninhar nos braços estendidos do homem alto e forte que se aproximava. Se houve lágrimas, desta vez foram de felicidade.

Rio Vermelho, 23 de março de 2017.

sexta-feira, 17 de março de 2017

O Vencedor

À entrada da estação da Lapa, o vendedor segurava com firmeza num dos braços uma caixa de papelão aberta, onde podia se ver pequenos cilindros que chamavam a atenção pelo seu multicolorido alegre e chamativo. Com o outro, ele acenava com insistência aos passantes para se aproximarem. O homem era um tipo parrudo e acima do peso, que se esforçava para transmitir confiabilidade ao seu anuncio, ao contrário de sua aparência, que não inspirava tanta confiança. Vestia uma bermuda listrada por baixo da barriga proeminente e mal cabia na camisa de malha branca estilo machão. Nos pés, sandálias havaianas desgastadas. “Batons! Batons! De todas as cores e excelente qualidade!”, ele apregoava. Sua voz era vigorosa como a de um barítono e não podia deixar de ser percebida. Alguns passantes olhavam-no com indiferença, outros seguiam adiante como se ele fosse um ser invisível.

Não muito distante, outro vendedor se esforçava para dar saída aos chips de celular comprados pela metade do preço na operadora. Este também falava alto e parecia igualmente mal sucedido. Mas as minguadas vendas não esmoreciam aquela parelha de intrépidos homens do comércio ambulante, ao contrário, uma poderosa energia interior movia-os em sua luta pela sobrevivência mantendo-os motivados.

— “Qui cô qué”? – o vendedor de batons perguntou à moça que demonstrou interesse, com uma expressão de insólita dúvida.

— “Caqué cô”. – ela respondeu olhando perdida para a grande variedade de escolhas à sua frente.
A moça tirou da caixa aleatoriamente um batom rosa.

— Ah! Você vai ficar linda com essa cô! – exclamou o vendedor muito convincente. Ele não era nenhum galã, mas sabia adoçar as palavras ao paladar feminino. – Essa é a cô a que eu vendo mais, e é a ultima unidade que eu tenho. Pode levar que você vai gostar e vai fazer sucesso!

Concluída a pequena transação comercial, o vendedor respirou mais confiante. Deu pela primeira vez um sorriso verdadeiro. Fazia horas que estava de pé ali naquele ponto, castigado pelo calor que não lhe dava uma folga. Naquela manhã, ninguém queria saber de comprar batons. O seu olhar cansado só se iluminava quando fazia uma venda aqui e outra ali. Mas ele nunca pensava em desistir, vender era difícil mesmo, qualquer coisa é difícil nessa vida, ele repetia para si mesmo, como para se lembrar de que a dificuldade estava na própria natureza da existência. Ele contabilizava mentalmente quanto ainda precisava ganhar, para passar na mercearia. Faltava ainda muito, mas o dia ainda não tinha acabado.

— Tem lilás? – perguntou a jovem vestida com o uniforme escolar.

— Olha ele aqui, ó! – respondeu o vendedor na sequência, entregando-lhe o batom. – Você vai ficar linda com essa cô! Essa é a cô que eu vendo mais, e é a ultima unidade que eu tenho. Pode levar que você vai gostar e vai fazer sucesso!

A estudante pechinchou, levou um pequeno desconto, com um sorriso de satisfação. O vendedor também sentia que também tinha ganhado, ao proporcionar à sua freguesia aquela pequena sensação de vitória.

“Vamos, vamos, minha agente! Já está quase acabando!”, gritou ele com a caixa ainda pela metade, já no meio da tarde.

— Eu quero um preto. – disse a moça com uma criança no colo e outra visivelmente já a caminho na barriga pontuda.

— Olha ele aqui, ó. – respondeu o vendedor entregando-lhe o batom com um sorriso. – Você vai ficar linda com essa cô! Essa é a cô que eu vendo mais, e é a ultima unidade que eu tenho. Pode levar que você vai gostar e vai fazer sucesso!


Rio Vermelho, 16 de março de 2017.





segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A Besta

Depois que os três bancos de madeira foram instalados no mirante em frente ao mar, num passado muito remoto, estes já acolheram uma infinidade de episódios relevantes e que, sem dúvida, ficaram registrados nas recordações dos que ali se sentaram: casais apaixonados admirando o pôr do sol, início de namoro, amantes fazendo amor discretamente, papos sérios e intermináveis, fim de namoro, lágrimas. Pessoas de fé escolheram orar sentadas naqueles bancos, como se fosse o lugar um templo ao ar livre, banhado pela maresia. Outras sentam-se apenas para espairecer ao som relaxante das ondas quebrando sobre as pedras, depois de um dia extenuante. Há, também, quem sente ali apenas para fumar um baseado enquanto admira a paisagem. Um leitor faz dali o seu cantinho de leitura todas as tardes. O mobiliário urbano que tantos serviços tem prestado aos visitantes do mirante da Praia da Paciência, serve, também, para que pichadores registrem sobre eles os seus protestos, numa linguagem estranha, cujo alfabeto só eles são capazes de decifrar.

Naquele fim de tarde, depois que o sol sumiu no horizonte, dois improváveis funcionários da prefeitura vieram ao mirante dispostos, e com energia, para apagar as pichações. Os dois homens pareciam ser muito simplórios e acreditavam estar fazendo um bem. Munidos de luvas de borracha, solvente, estopa, lixa e escova de aço, tinham a intenção de devolver aos bancos o seu estado original, sob os olhares indiferentes de skatistas que praticavam, próximo dali, manobras acrobáticas em seus skates.

Limpar os bancos não foi tarefa fácil, mas a dupla obstinada não desistiu enquanto estes não ficaram novinhos em folha. Os dois homens se revezaram naquela luta, pois a tinta era teimosa. Um esfregava com a estopa embebida em solvente e o segundo, em seguida, com a escova de aço. Depois o primeiro completava o serviço com a lixa; tudo era uma questão de fôlego e braços fortes. Por fim, a tinta desvaneceu-se e um sorriso de satisfação desenhou-se na face dos dois batalhadores. Aquela maçante tarefa repediu-se em cada banco.

Quando os dois homens da prefeitura recolheram os seus apetrechos e foram embora, com um sentimento de dever cumprido, não imaginavam que tinha atiçado a ira dos que ficaram. Um skatista resolveu agir, moveu-se para longe dos bancos, montado em seu skate, e num gesto rápido e hábil, mudou a direção de sua trajetória, agora em direção aos bancos. Partiu para cima destes feito uma bala humana e quando estava chegando muito próximo, fez o skate saltar para cima de um dos bancos onde estacionou. Da mochila que carregava nas costas, sacou de dentro um cilindro de metal, que depois de sacudi-lo vigorosamente, aproximou-o do assento do banco, fazendo sair de dentro um jato de tinta vermelho, com o qual desenhou a figura de uma besta assustadora com ameaçadoras mandíbulas a desafiar com seus dentes afiados, provavelmente o seu autorretrato. Dando-se por satisfeito com a proeza, ao desfazer em questão de segundos o trabalho que os dois homens demoraram horas dedicados, o skatista socou com o punho cerrado o vazio em sinal de vitória. O espetáculo repetiu-se nos dois bancos seguintes, sob as manifestações de júbilo dos outros companheiros. Não se sabe ao certo que vitória comemoravam.

Rio Vermelho, 22 de janeiro de 2017.


terça-feira, 3 de janeiro de 2017

O Vendedor de Peões

No fim da tarde do primeiro dia do ano, quando o sol excruciante do verão começa a abrandar à medida que desliza-se suavemente para ir sumir no horizonte, um senhor circulava entre os turistas e frequentadores do Largo de Santana, tentava vender peões. Carregava a sua mercadoria presa a um bonito mostruário de tábua cortado no formato de um grande peão, oferecendo-o sem fazer alarde a um e a outro. Quem jurasse que os peões tinham desaparecido da face da terra juntamente com os dinossauros, brinquedo de criança de priscas eras, que só existissem agora como curiosidade em museus de arte popular, iria se surpreender com aquele vendedor improvável. Mas ali estava o cidadão obstinado que acreditava que, a pesar da popularização dos brinquedos que não se pode tocar e nem pegar, da era digital, ainda houvesse esperança de alguém se interessar por algo tão lúdico e antigo como brincar com o peão.

Seus peões eram confeccionados por ele próprio; de madeira, pau d’arco, massaranduba, jaguaratiba, frejó, quanto mais dura, mais pesada ela é, excelente para a confecção do brinquedo. Eram entalhados um a um, com formões, macetes e goivas, e depois lixados para dar o acabamento, eram perfeitos como se tivessem sido moldados no torno elétrico. E para quem duvidasse de sua destreza, o velho sacava do bolso o smartphone e rodava o pequeno documentário no qual ele estrelava como o fazedor de peões artesanais que era. Ele sentia orgulho de sua habilidade e maestria, porque “fazer peão na “unha”, não é pra qualquer um, não”. Seus peões eram coloridos com as cores de times de futebol, mas também tinham aqueles que não seguiam religião alguma, pintados do jeito que lhe viesse à imaginação, ou apenas ao natural, mostrando a beleza da madeira em que fora entalhado.

Ele oferecia os seus peões, mas ninguém lhe dava trela. As atenções estavam voltadas para a longa fila do acarajé, o primeiro acarajé do ano, ou por fotografar o eminente pôr do sol, o primeiro pôr do sol do ano. Um gringo, não obstante, lhe deu atenção, nunca tinha visto aquele objeto curioso de formato aeroespacial. Um só sabia agradecer em nosso idioma e o outro falava como tinha aprendido na rua e em casa, mas a mágica da linguística resolveu aquele momentâneo entrave. O vendedor falava pausadamente e alto, como se gritar ajudasse à compreensão. Mas, percebendo o vendedor que a estratégia não estava funcionando, ele resolveu fazer uma demonstração.

— Olhe, preste a atenção, você pega o fio e amarra na cabeça do peão assim, e estica ele com firmeza até o bico, dando três voltas assim, entendeu? Depois vai enrolando o fio em volta do peão, subindo pelo corpo do peão até chegar no ombro, está entendendo? – gritou.

O gringo observava perdido as instruções do mestre do peão e esbouçava aquele sorriso abestado típico dos gringos. Um falava alto para se fazer entender, e o outro sorria para dizer que não entendia coisa alguma, e, no final, os dois se entenderam na hora de fechar o negócio, que as cifras são uma linguagem universal.

Ao final das instruções, o vendedor preparou-se para mostrar como um peão realmente funciona. E com um gesto exibicionista e dramático, dobrou uma perna e esticou a outra como fazem habilmente os skatista sobre a prancha, o braço livre foi jogado para frente para dar equilíbrio ao corpo, enquanto o que segurava o peão, passava pela costa num gesto elegante e com técnica, a mão treinada soltou o peão ao mesmo tempo que segurava firme a ponta do fio, projetando o brinquedo sobre o chão, onde pousou rodopiando com formosura, desenhando um círculo completo. Admirando o seu feito mais uma vez, o vendedor sorria como a criança encantada com o brinquedo que via funcionando pela primeira vez, e os olhos brilhavam de admiração e felicidade.

Rio Vermelho, 1º. de janeiro de 2017.