terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Desculpa anã.

O maior desejo de Lindiane era um dia se casar e formar uma bela família, assim como fizera os seus queridos e amados pais. E para realizar este maravilhoso sonho, ela contava ter ao seu lado Dinho, seu futuro e amado esposo, depois de quase seis longos anos de noivado. Isto sem levar em conta os outros três de namoro na porta, sob os olhares severos e disfarçados do pai. Para ela, não havia bem mais valioso e sagrado que uma família. Casar e ter filhos poderia parecer, para muitas mulheres modernas, uma coisa antiquada, apesar de que, invariavelmente, era o que lhes acontecia mais cedo ou mais tarde, a menos que escolhessem por levar uma vida fora dos esquemas convencionais ou ignorar os chamados da natureza para trazer a este mundo mais um habitante.

    Lindiane já tinha tudo planejado nos mínimos detalhes, desde o momento em que passou a ter aquele irremediável desejo de formar sua própria família, quando ainda era apenas uma adolescente. Já tinha escolhido o modelo de vestido de noiva, seria igualzinho ao da mãe. Só não seria o próprio porque este não lhe cabia no corpo mais robusto, e qualquer ajuste que sofresse o tornaria definitivamente diferente do original. Era melhor fazer outro com suas medidas. Seria todo em tafetá, e como a tradição mandava, branco, com acabamento nas bordas e no decote em rendas de bilros trazidas do Ceará. Sua tia Arlinda, se encarregaria de sua confecção, uma vez que não havia em toda a cidade, melhor costureira de vestidos de noiva que ela. A cerimônia aconteceria na capela do Colégio Santo Inácio, onde estudara desde menina e onde rezara pela primeira vez pedindo a Deus um marido bom e justo.

    Dinho era tudo que se poderia esperar de um futuro marido e bom pai. Ele era um homem alegre e muito trabalhador. Atencioso e carinhoso com ela, e atento a satisfazer-lhe os desejos nos mínimos detalhes. Ele era compreensível e descontraído. Gostava de crianças. Seus pais, também, gostavam muito dele. Ela também gostava muito da família dele que era composta apenas da mãe viúva e de uma irmã com que ela se relacionava muito bem. Enfim, tudo se coadunava para abençoar aquela união como algo sagrado e eterno.

    Desde o seu primeiro emprego, Lindiane teve o cuidado de economizar uma pequena porção de seu salário para comprar o seu enxoval de casamento, e como planejara se casar num prazo de no máximo oito anos, até lá já teria o suficiente e ainda sobraria alguma coisa a mais para dar entrada num pequeno apartamento. Seu sonho era comprar um na mesma rua onde moravam os pais, assim poderia contar com a ajuda da mãe para cuidar das crianças quando os filhos nascessem e ela tivesse de voltar a trabalhar. Gostaria de ter um casal. O menino se chamaria Aurélio, em homenagem ao falecido pai de Dinho. Já a menina seria Arlete, o nome de sua querida avó materna. Na hipótese de nascerem dois meninos ou duas meninas, pelo menos um deles receberia um daqueles nomes sagrados e Dinho escolheria o outro.

    Lindiane ficava imaginando como seria a decoração de seu lar. Os móveis da sala de visitas seriam novos e bonitos, nada muito expendioso, mas de bom gosto. Colocaria um carpete branco e macio e um conjunto de sofá com poltronas igualmente macios. A mesa da sala seria redonda toda de madeira. Ao centro, ficaria o vazo de cristal Fratelli Vita que ela tanto gostava e que fora uma herança de sua avó. Em dias especiais, o encheria com flores do campo de cores variadas que perfumariam toda a casa com uma fragrância agradável e suave. Sobre a mesa quadrada de fórmica da cozinha, colocaria uma gamela onde poria, semanalmente, frutas frescas de todos os tipos de acordo com a estação. Ela adorava o colorido saudável das frutas. Já ouvira falar que era moda fazer aquela decoração usando-se legumes e verduras também, e por isto, estava curiosa em experimentar aquela novidade. O quarto do menino seria pintado de azul bem claro e decorado com brinquedos e pôsteres de carros e aviões. O da menina seria num tom de rosinha com gravuras de flores penduradas nas paredes e bonecas de pano sobre a cama e prateleiras. Seu quarto, apesar de ser o maior de todos, seria o mais simples. Apenas a cama de casal, um armário para colocar roupas e uma penteadeira. Queria que o exemplo de uma vida bem regrada servisse de modelo para as duas crianças. A casa toda seria limpa diariamente e uma vez por semana passaria óleo de peroba sobre os móveis para dar aquele cheirinho de limpeza.

    Foi este sonho que permeou a sua imaginação durante muitos anos até marcar a data do casamento com Dinho para dali a um ano, quando ele completaria exatos trinta anos. Os dois até já tinham marcado o dia que dariam a entrada no novo apartamento, em duas semanas. Seu sonho já estava se tornando uma realidade. A vida tinha o sabor doce, pensou certa manhã Lindiane.

    Um belo dia antes da data que Lindiane e Dinho haviam combinado para irem à imobiliária fechar o negócio do apartamento, Dinho parecia mais agitado do que o de costume. Quanto ele estava assim naquele estado, Lindiane já sabia que ele queria lhe dizer alguma coisa importante e não sabia como.

    — O que você está tentando me dizer, Dinho? Por que você está desse jeito? — perguntou preocupada.

    — Sabe, Nane, estive com meu tio hoje esta tarde. Agente conversou bastante, sabe. — disse sem jeito.

    — É mesmo? E sobre o que conversaram? — perguntou curiosa.

    — E se agente pegasse todo esse dinheiro do casamento que agente vem juntando e investisse tudo numa plantação de coco-anão? O que você acha? — perguntou desconcertado evitando olhá-la nos olhos.

    Ao ouvir aquele plano esdrúxulo, as lágrimas começaram a verter dos olhos de Lindiane feito um coração que sangrava partido. Ela, que esperara tanto para se casar com Dinho e realizar seu sonho de menina, estava, então, diante de um homem que ela desconhecia. Aquela sugestão infame era o modo de Dinho declarar que não queria mais casar. Que mulher esperaria por algo tão incerto por mais cinco anos, o tempo necessário para um pé de coco-anão crescer e começar a dar os primeiros frutos? Quantos cocos seriam necessários para realizar o seu sonho de casamento? Como vocês podem ver, este não é nenhum conto de fadas.

Rio Vermelho, 18 de dezembro de 2009.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Ratos de festa.

Era uma daquelas noites enluaradas nas quais o céu fica pontilhado de estrelas que brilham no firmamento feito minúsculos diamantes sobre um veludo negro sem fim. Daquelas que nos dá vontade de passear de mãos dadas com uma bela moça ao longo de uma praia deserta. No entanto, eu estava a caminho de encontrar com amigos dos tempos de escola, o que não deixava de ser uma ocasião especial. Considero os amigos de infância como um bem para toda a vida, estes é que são os amigos de verdade. Para completar aquela ocasião memorável, uma suave brisa atenuava o calor daquela noite morna de começo de um verão fora de época, como um convite perfeito para sentar-se ao ar livre ao redor de uma mesa servida de comida honesta e bebida à vontade, na companhia de amigos que me conheciam desde pequeno, para recordar dos velhos tempos. O local do encontro era o Mariposa do Shopping Boulevard 161.

Cheguei meia hora adiantado, como de costume, e, para matar o tempo, fui olhar vitrines. Enquanto passeava distraído, percebi uma animada música de festa vinda do andar superior através de uma sacada acima de onde eu me encontrava. Não resistindo à minha natureza curiosa, fui até lá dar uma bisbilhotada. Para quem não conhece, o Boulevard 161 é um pequeno e agradável shopping de bairro de tijolo aparente de apenas dois pavimentos, com imensas arcadas que permitem a iluminação e a ventilação natural, uma vez que suas vias internas não são ar-refrigeradas. Usei o elevador para chegar até o andar de cima. Ao sair do cubículo, avistei um pequeno grupo de pessoas elegantemente vestidas em frente a uma loja. Aproximei-me cauteloso para não chamar a atenção. Eis que surgiu logo à minha frente um garçom equilibrando numa mão uma bandeja cheia de longos copos com gelo e na outra, segurava firme uma garrafa de vodca.

—É servido? — ofereceu polidamente com ar solene.

Dei um largo sorriso e assenti com a cabeça. E por que não? Uma dose de álcool faria-me chegar a meu encontro já com o espírito festivo. Logo em seguida, lá estava eu com um copo de vodca importada na mão bebericando. Nem bem dei o primeiro gole e uma bandeja de canapés de camarão surgiu à minha frente, carregada por outro garçom que parecia já ter tomado quatro dozes daquela mesma vodca. Dei outro sorriso e bati com a cabeça. Não vou negar que gosto muito de camarão. Ainda mais camarões de coquetel, são graúdos. Estes eram enormes, pareciam ter vindo de um daqueles arquipélagos na Polinésia, onde super-potências fazem testes de bombas nucleares! Dei uma mordida, estava ótimo. Senti-me radiante, desculpa o trocadilho. Dei uma volta pelo ambiente e não descobri do que se tratava o vento. Camarão? Aceitei outro canapé e fui logo surpreendido por uma taça de champanhe. Não sou fã de champanhe, mas não recusei a oferta. Afinal, champanhe é sempre champanhe numa festa fina. Na verdade, minha preferência sempre é uma generosa dose de uísque. Mal pensei no assunto e surgiu outro garçom com copos cintilantes e uma garrafa de Bala 8 à minha frente. Aceitei um copo candidamente. Mas eu ainda não tinha a menor idéia do que se travava aquele coquetel e nem isso me importava, desde que meu copo estivesse sempre cheio. Eu bem poderia perguntar a um dos garçons, mas isto seria fácil demais. Preferi observar e descobrir por mim mesmo o que estavam festejando.

Esta invasão em festa alheia me fez lembrar-se de um certo camarada português que eu costumava encontrar em ocasiões como aquela, há muito tempo atrás. Não recordo o seu nome e duvido que ele alguma vez o tenha dito ou eu lhe perguntado. Naquela época, eu tinha o hábito de comparecer aos convites que recebia para coquetéis de todo o tipo de evento, exposições de arte, lançamento de livros, datas comemorativas, o que fosse. Era aquele tipo de evento impessoal que acredito que mesmo quem o estivesse promovendo, conhecesse todos os seus convidados. Eu era um verdadeiro rato de festa. Não era raro eu sair de um coquetel para ir o outro. Era uma peregrinação etílica e gastronômica que eu cumpria com redobrado prazer. Foi assim que conheci este personagem, uma vez que ele coincidentemente comparecia aos mesmos eventos. Eu, no entanto, ia de convidado e ele, de penetra! Nossos encontros freqüentes nos levaram a conversar casualmente. Percebi que ele tinha um verdadeiro apetite pelos acepipes, embora eu devo confessar que a maioria daquelas festas primavam pela fartura. Eu sempre o encontrava de boca cheia e com um copo na mão, parecia que era sua marca registrada. Percebi que ele mal conhecia ou tentava conversar com os outros convidados e, por isso, ficava feliz quando eu lhe dava atenção. Até hoje eu não faço idéia de como ele tomava conhecimento de todos aqueles eventos e dava um jeito de estar presente a todos eles mesmo sem ser convidado. Quando eu chegava, lá já estava ele. Ao me ver, vinha me cumprimentar.

— Olha, o croquete de camarão está meio borrachudo, mas as empadas estão boas. — informava-me logo de cara.

— Este uísque está meio suspeito. — acrescentava fazendo uma discreta careta.

Não devo negar que suas informações eram relevantes e poupavam-me frustrações. Nada mais desagradável para um paladar refinado do que por na boca um uísque de terceira categoria. Embora eu soubesse que ele sempre entrava nas festas sem ser convidado, jamais me atrevi a perguntar-lhe como tomava conhecimento delas se não recebia convites. Talvez o penetra de festa profissional tenha uma rede de informações que o põe a par de todas as bocas-livres da semana. Nem o Pentágono ou a CIA seriam tão bem informados.

Um dia, resolvi não ir a um dos convites. Depois não fui a outro e mais outro, e não demorei muito a não ir mais a nenhum deles. E como eu já previra, nunca ninguém jamais deu a menor falta da minha pessoa. Deixei de ser mais uma cabeça para fazer número em coquetéis daquele tipo, tão impessoais. Na verdade, eu já estava ficando surdo de ouvir tanta conversa chata. Certo dia, recebi um telefonema de um querido amigo, avisava que iria lançar mais um livro e que o meu já estava reservado. Embora ele não me pedisse para ir ao lançamento, fui assim mesmo, para lhe fazer esta surpresa e demonstração de apreço. Ao entrar no pátio do local onde aconteceria o lançamento, eis que surge à minha frente outro se não o português penetra e rato de festas. Estava mais velho e mais gordo. Fazia mais de dez anos que eu não o via.

— Rapaz, você sumiu! Que saudades, por onde tem andado? — perguntou com um acarajé na mão.

Salvador, 7 de dezembro de 2009.