segunda-feira, 26 de março de 2012

Vivendo perigosamente.

Depois de experimentar ser levado para cima e para baixo, nas garupas dos moto-taxis de Lençóis, – ou melhor dizendo, só morro acima porque para descer, como é de praxe, todo santo ajuda – perdi o medo de andar de motocicleta. É que este é o único meio de transporte público do lugar, fique sabendo.

Por dois míseros Reais este curioso meio de transporte da pequena cidade montanhesca nos leva a qualquer lugar do perímetro urbano, mas o seu único inconveniente, além do fato de ser uma motocicleta, é ter de pôr um capacete de proteção, o qual já passou pelas cabeças de quase meia população da cidade, fora a dos forasteiros que nem eu. “Meu, filho, este capacete é sempre esterilizado depois de cada viagem, não é mesmo?” Perguntei ao motoqueiro, temeroso da resposta. “O que é isto, esterilizar?” Indagou o rapaz com um olhar confuso. “É o que eu imaginava.” Respondi resignado, colocando aquela incubadora de piolhos na minha cabeça.

Como o tráfego e congestionamento são pragas das cidades grandes que ainda não infectaram Lençóis, a viagem na garupa de uma motocicleta é tranquila e segura, e o máximo que pode acontecer é motoqueiro e passageiro irem ao chão com motocicleta e tudo, quebrando alguns ossos. Mas a minha maior provação foi ir a uma localidade fora de Lençóis, a apenas 10 minutos de motocicleta, e que me pareceu durar uma eternidade, pegando a autoestrada. Meu coração vinha até a boca cada vez que cruzávamos com um daqueles enormes ônibus ou caminhão-baú, era como se levássemos um sopapo invisível, devido ao violento deslocamento de ar. Eu sentia o corpo inteiro chacoalhar. Nunca mais!

Eu nunca vivi tão perigosamente e acho que a única vez que realmente me expus ao perigo foi pegando carona com a mãe de um amigo, nos tempos de colégio. A dona M.C.R. começou a dirigir tardiamente e era muito distraída ao volante. Gostava muito de prosear enquanto dirigia e tinha o assustador hábito de virar o pescoço para o banco traseiro para olhar para o seu interlocutor, com o automóvel em movimento! Por isso mesmo eu ficava sempre caladinho durante a viagem, rezando para eu tudo desse certo. Mas, felizmente, um anjo da guarda sempre esteve ao seu lado, e sua morte, muitos anos mais tarde, deu-se por causas naturais.

Então, de volta a Salvador depois de uma temporada na Chapada, certo dia, passei em frente de uma loja de motocicletas aqui no Rio Vermelho e não resistindo à curiosidade, entrei e fui perguntar ao vendedor sobre os preços, no caso de algum dia eu vir a adquirir uma, você sabe, para me ajudar a enfrentar alguma crise de meia idade.

Um jovem vendedor trajado como se estivesse num rally, veio ao meu encontro com um sorriso daqueles de vendedor.

— O senhor deseja comprar uma motocicleta? – perguntou com perspicácia.

— É... o senhor adivinhou! – respondi olhando em volta.

Aproximei-me de uma máquina que parecia uma coisa de filme de ficção científica e que me deixou em dúvida se aquilo era um meio de transporte ou arma de guerra, ou apenas um brinquedo para marmanjos.

— O senhor fez uma ótima escolha... – disse o vendedor.

— E eu já escolhi, foi?

Então, o rapaz do rally foi cuspindo num só fôlego tudo que devia se saber sobre aquela obra de arte metálica da era pós-moderna.

— Esta é um lançamento da fábrica. Possui 900 cilindradas, refrigeração a ar, injeção eletrônica, motor de 4 tempos, partida em pedal e elétrica, 5 marchas, freios ABS na dianteira e na traseira, amortecedor de direção, farol de neblina e contrapeso no guidon.

E ele falou tudo aquilo com a convicção de quem estava diante de um expert no assunto. Logo eu que só entendo de notebooks, e assim mesmo só de repetir o que ouço ou leio a respeito. Mas para eu não parecer um ignorante no assunto motociclístico, perguntei candidamente ao vendedor:

— E a configuração dessa maravilha representa quanto de processamento e gigabytes?

Salvador, 26 de março de 2012.

domingo, 11 de março de 2012

Lição de cidadania na Rua do Lajedo.

A minha rua aqui em Lençóis foi batizada com o simpático nome de Rua do Lajedo, um nome pouco comum que evoca à minha mente reminiscências de coisas rústicas como argila, olaria e objetos de cerâmica da cultura popular feitos no torno. Trata-se de uma rua estreita que começa uma casa acima da minha e se estende até um pedaço de riacho conhecido como Lava Pés e onde lavadeiras fazem o seu exaustivo trabalho. Um curto trecho desta rua foi recentemente pavimentado com blocos de granito, e por isso a sua superfície ainda é áspera, e muitos e muitos anos ainda se passarão até que o chão se torne liso e encerado, e as bordas de suas pedras levemente arredondadas pelo desgaste do vai e vêm de transeuntes. Depois de minha casa, a rua faz um joelho e quebra para o lado e aí o tal pavimento acaba, o chão é de terra e de rochas do próprio solo e sobre as quais duas fileiras de casas geminadas se estendem ao longo de cada lado da estreita e simpática rua.

As ruas de Lençóis são muito mais que simples vias de passagem, isto porque os moradores as utilizam como extensão de suas casas. É lá que a vida doméstica acontece a céu aberto, é onde se lava a roupa suja e o rapaz vai namorar a moça, no cair da noite, na porta de sua casa.

Em minha primeira manhã em Lençóis, abri as janelas da frente de casa para que o ar fresco e o sol invadissem a sala, e a primeira coisa que vi foi a vizinha da casa em frente, uma solícita senhora da boca desdentada, varrendo zelosamente não apenas a porta de sua casa mas, também, o pedaço de rua em frente. Achei curiosa aquela cena, pois venho de uma cidade onde as pessoas utilizam a rua para jogar o lixo. Mais tarde, voltei à janela e lá estava ela sentada ao meio fio com uma grande bacia entre as pernas, lavando a roupa suja. Enquanto esfregava vigorosamente cada peça, falava com seu pequeno neto, sentado logo a seu lado, lhe dizia, com um convincente argumento, para ir escovar os dentes ou, do contrário, ficaria banguela que nem ela. Ao terminar de lavar a roupa, pendurou-a num varal improvisado que atravessava a rua e o qual ela levantava com a ajuda de uma vara para que este não atrapalhasse a passagem. Então, a rua serve de área de serviço.

Na segunda-feira de carnaval pela manhã, eu me encontrava escrevendo, quando minha concentração foi distraída por vozes que vinham do lado de fora, em frente à minha casa. Interrompi o serviço, fui até a janela dar uma espiada e me surpreendi ao ver que minha vizinha recebia visitas, sentavam-se ao meio fio, proseavam animadamente. Fui me juntar a eles sentando-me nos degraus da minha porta. Participei da conversa por um tempinho como se fosse um amigo de longas datas e depois voltei ao trabalho. Quando veio a noite, percebi que depois da última novela, os vizinhos preferem ir para a porta de casa ficar conversando ao invés de ir assistir na TV um “reality show” que prima pelo mau gosto. De pé, à entrada de casa, duas casas à diante, um casal de jovens namorava à moda do tradicional “namoro de porta”. O pai da moça fica na sala, do lado de dentro, vigiando os movimentos das mãos do rapaz, que mão-boba é considerada uma falta grave aqui por estas bandas. Então, a rua serve, também, como sala de visitas.

No dia seguinte, ao convidar o sol a entrar em minha casa abrindo-lhe a janela, lá estava a dona Jandira, minha vizinha de frente, escovando os poucos dentes que lhe restam e varrendo a porta da rua ao mesmo tempo. Cumprimentamo-nos calorosamente com um bom dia, apesar de o dia estar meio nublado, como, aliás, em todas as manhãs cedo durante minha breve estadia em Lençóis. Elogiei o seu zelo por nossa rua e ela disse-me satisfeita que os moradores cuidavam da rua, razão pela qual não se viam mosquitos, baratas ou ratos pelas redondezas. À tarde, as crianças brincam animadamente na rua varrida, em segurança, para a despreocupação dos pais, outros ligam o som às alturas e sentam-se na porta de casa para ouvir música, ainda que de gosto discutível. Um rapaz, mais adiante, tem uma motocicleta e aproveita a tarde de feriado para dar um trato na máquina, na rua, em frende de casa.

Na minha Rua do Lajedo, raramente passa um automóvel e quando tal acontece, uma tartaruga consegue ser mais veloz que ele! Mas uma coisa me chamou a atenção depois da quarta-feira de cinzas, a casa da frente ficou o dia todo fechada. E o mesmo se sucedeu nos dias seguintes. Eu não ouvia mais o vozerio em frente de casa, e também percebi que a nossa frente não era mais varrida, as folhas secas e poeira se acumulavam. A dona Jandira estava fazendo falta. No sexto dia, cheguei a imaginar que ela tinha nos abandonado. Enquanto eu escovava os dentes, pela manhã cedo, olhava pela janela o estado que ficara a frente de nossa casa sem a minha zelosa vizinha, as folhas se acumulavam e a poeira, também, e pensava comigo mesmo, onde teria ido ela, nem me avisara. Fui até o quintal de casa e voltei com a vassoura para varrer a frente da rua.

Chapada Diamantina, 5 de março de 2012.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Sobre a sabedoria de uma chapeleira da Chapada.

Meu encontro com a dona Edite se deu na forma de uma transação comercial, quando entrei em sua lojinha, situada no final da Rua da Baderna, próxima à igreja do Rosário, com o intuito de comprar um chapéu que me protegesse do sol abrasador da Chapada. Acontece que ela é a única artesã a fazer chapéus de palha aqui na acolhedora cidade de Lençóis.

Dona Edite é uma senhora idosa de voz firme e determinada, cujas mãos pequenas e ágeis trançam a palha do licuri enquanto proseia com a vizinha de porta, sentadas lado a lado em cadeiras sobre a estreita calçada em frente de casa. Ela faz isto diariamente à noite e quase no escuro porque as mãos, já habituadas ao labor, conhecem de cor o caminho, conta ela, e a claridade lhe ofusca as vistas. E é em sua pequena e humilde casinha de telha vã que funciona também a sua loja e o atelier. Chapéus, sacolas, abanadores, descansos para pratos e uma variedade de outros utensílios feitos de palha se espalham por paredes e estantes dando vida à pequena sala transformada em loja, e não há quem não se maravilhe com tanta coisa bonita e de bom gosto, produto de nossa arte popular. Pendurado numa parede, está um chapéu de aba tão grande quanto um sombreiro de praia que serve para acolher até toda uma família. Tem outro, de formato engraçado, cuja copa é tão longa quanto se pode imaginar e vai se afinando até chegar à extremidade e se curva para frente lembrando um quiabo. E dona Edite pensa em tudo, inventou um que é especial para maridos traídos, pois sua copa é dividida ao meio em duas, podendo acolher um belo par de chifres. O qual eu mais gosto é um cuja copa começa estreita na base e vai se expandindo até chegar ao final que é levemente curvo nas bordas e no topo, lembra um grande e comprido pinico.

Quando questionada como aprendeu o seu ofício, dona Edite responde orgulhosa que este é um dom que nasceu com ela e que nunca tomou curso para quilo, que seu pai foi artesão e antes dele foi o avô e aquela habilidade foi passada de pai para filho se observando no dia a dia, tal qual uma criança aprende a andar. Nas palavras simples de dona Edite e no seu modo de falar existe a sabedoria de uma mulher que trabalha de sol a sol, tirando de seu ofício o seu sustento e o de sua família, e foi tecendo artigos de palha que educou os filhos que agora são doutores diplomados, conta orgulhosa.

Certa noite, entrei em sua loja à procura de um chapéu de abas largas, e como os modelos disponíveis não eram do meu agrado, dona Edite, gentilmente, se ofereceu para me fazer um sob medida. Eu queria um que fosse igual ao de pescador, mas com as abas curvadas para baixo. “Eu vou fazer um assim do seu gosto, meu filho”, disse com candura. “Passe aqui qualquer dia desses que ele estará pronto”, prometeu com precisão.

No caminho de saída, observei no chão junto à janela uma enorme cesta cheia com sementes de olho-de-boi, cuja existência eu conhecia desde os tempos de moleque. Para quem nunca ouviu falar, seu formato é um pouco menor que uma moeda de 25 centavos, irregularmente arredondado e de coloração castanho escura. Agente fazia uma traquinagem, friccionando-a no chão esta tinha a propriedade de ficar tão quente que ao encostá-la de surpresa na pele da vítima, ela dava um pulo e um grito de susto. Uai! E este era o único uso que eu conhecia da semente de olho-de-boi. Dona Edite me ofereceu uma, ao que eu perguntei para o quê servia. “Isto é um remédio, meu filho. Ela afasta as coisas ruins, traz felicidade e saúde. Você a coloca no bolso, ou na bolsa, ou debaixo do travesseiro.” Fui até a cesta e escolhi a mais bonita, perguntando em seguida: “Colocando-a debaixo do travesseiro, ela atrai mulher?” Ao que ela deu um suspiro e balançando a cabeça, respondeu com a voz doce: “Assim, também, você já está querendo demais, não é, meu filho?”

Chapada Diamantina, 29 de fevereiro de 2012.