segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Um certo seu Pereira.


A casa ao lado, onde certa vez uma sinistra senhora transformara no mais barulhento canil já ouvido por estas paragens, fora muito tempo antes habitada pelo saudoso seu Pereira e sua numerosa família. A criadora de cães foi posteriormente banida das vizinhanças pelos incomodados, juntamente com seus mais de vinte bichos, mas isto já é outra estória. (Leia neste blog 'O diabo mora ao lado').

O seu Pereira era uma daquelas pessoas que, de vez em quando, temos a sorte de termos como vizinho. Um sujeito prestativo e muito cordial. Era corretor de imóveis por profissão e mesmo quando já tinha passado dos 60 quando para cá se mudara, nunca o vi um só dia faltar ao trabalho ou se queixar de doença, ou reclamar da vida. Tudo lhe parecia excelente. Ele era um camarada conversador e por conta de sua ocupação, sabia da vida de todo mundo, e não se incomodava em compartilhar o seu vasto conhecimento com agente. Os cabelos eram fartos, brancos e brilhantes e a circunferência de sua cintura parecia um barril de vinho, embora ele jamais pusesse uma única gota de álcool na boca. Seu Pereira era um homem muito católico de ir a missa todos os domingos e praticava sua crença ajudando as pessoas como podia e achava que era o certo. Houve um tempo em que ele e meu pai faziam caminhadas juntos até a Barra todas as manhãs. Coisa de safenados. Antes de sair de casa, o seu Pereira enchia os bolsos da bermuda com uns trocados com a decidida intenção de distribuí-los a quem ele achava que precisava e que ele encontrasse pelo meio do caminho. Parecia um político em véspera de eleição. Isto é pra você, dizia entregando uma nota ao surpreso agraciado. Ele era uma figura. Meu pai se impressionava com tamanha generosidade e um dia quis lhe pedir uns trocadinhos!

Seu Pereira não era apenas bem informado a cerca da vida alheia como também se preocupava genuinamente com as pessoas e com seus vizinhos. Houve um tempo em que eu trabalhava à noite 3 vezes por semana, bons tempos aquele!, e chegava em casa tarde da noite. Eu vinha em meu automóvel e dava uma paradinha em frente ao portão da garagem do outro lado da rua, saltava para abri-lo deixando o motor ligado. Durante toda esta operação, eu contava com a proteção do meu vizinho anjo da guarda, que aparecia em sua janela quando me ouvia chegar, para vigiar minha chegada e certificar-se que eu entraria em casa com segurança. Certa vez, ao sair do carro olhei para sua janela no segundo andar e lá estava ele em seu posto. Acenei-lhe com a mão e ele respondeu com um balanço de cabeça e mostrando-me discretamente que tinha nas mãos uma arma. Graças a Deus, nunca foi preciso usá-la.

Naquele tempo, as noites em minha rua eram silenciosas e a rua ficava completamente deserta ao cair da noite - muito diferente de hoje, infelizmente - iluminada apenas por dois postes que se revezavam em ter luz. Tenho certeza que era apenas uma única lâmpada para os dois postes que a COELBA trocava de um para o outro a cada reclamação, pois quando uma era trocada, a outra não acendia! Nossa rua era tranqüila e segura, apesar disso. Certa manhã, um homem bateu à nossa porta. Apresentou-se como o vigia noturno. Tinha o rosto marcado por cicatrizes, inclusive uma abaixo do nariz, indicando que tivera lábio lepurino, fazendo com que sua fala fosse fanhosa. Vieira para cobrar pelo serviço. Expliquei-lhe que jamais solicitara tal coisa e que, de qualquer forma, não estávamos interessados. Mesmo assim, vez por outra, passei o ver pelas redondezas à noite usando uma jaqueta preta onde se lia nas costas a palavra 'Segurança', escrita com letras bem grandes e brancas. Sua presença era nos lembrada constantemente com seu apito que quebrava o sossego da noite. Ele era insistente, todos os meses batia à nossa porta e ouvia a mesma recusa. Nossa rua era segura e nunca se ouvira estórias de roubos ou assaltos, de que serviria um vigia, então?

Existem pessoas que são de uma maldade incompreensível. A voz fanhosa de 'nosso vigia' era motivo de freqüentes chacotas entre os porteiros de prédios das redondezas e outros vigias das ruas próximas. Diziam, também, que ele era um frouxo e que se um dia tivesse de enfrentar um assaltante, ele seria o primeiro a correr de medo. Para mim, tudo isso era conversa de quem não tinha o que fazer. Certa noite, ao chegar em casa, o encontrei sentado no meio-fio em frente à garagem, aos prantos. A cara estava arrebentada. Falou que bateram nele, mas não disse quem e nem por que. Ajudei a se levantar e dei-lhe algum dinheiro para ir para casa cuidar dos ferimentos. No dia seguinte, o seu Pereira veio me contar tudo. Assistira de longe um porteiro de um prédio lhe dar uma surra humilhante e por um motivo infantil. Coisa de moleque. Era uma coisa que não se faz com um pai de família, disse indignado. Uma injustiça fazer aquilo com um homem, humilhar daquele modo a sua masculinidade. Em outros tempos, correria até lá para defender o coitado. Já tinha lutado boxe em sua juventude e tinha os punhos ainda fortes. Mas aconteceu tudo muito rápido, não teve chance de fazer nada. Teve dó do moço, sobre quem já sabia tudo a respeito. Era pai de cinco filhos e morava longe. De dia era zelador de uma escola e à noite ganhava uns trocados como vigia noturno. Quando o apanhado conseguiu escapar de seu agressor, correu para estas bandas de cá e ao passar em frente à casa do seu Pereira que assistira a cena de sua janela, este lhe gritou de lá de cima com o intuito de levantar o seu moral, pelo vexame que passara. Não é que ele era mesmo um frouxo?! Queria consolá-lo de algum modo para que chegasse em casa e enfrentasse a sua família de cabeça erguida.

- Olha, seu Joaquim, eu vi o que aquele bando fez com o senhor – apanhara apenas de um! Olha seu Joaquim, eu sei do que o senhor é capaz! O senhor é um homem muito violento e perigoso, Sr. Joaquim! Já me contaram tudo a seu respeito. Não vá fazer nenhuma besteira, heim! Vá pra casa e esfrie a cabeça. Vingança não leva a nada. Pense em sua família!

O Sr. Joaquim ouvia tudo aos prantos, sentia-se como um menino assustado. Nunca fora tão insultado.

- Este seu choro é de raiva, dá pra perceber isso. Eu já passei por isso também. Não faça nenhuma besteira! Vai pra casa, com Deus!


Rio Vermelho, 15 de janeiro de 2009.

domingo, 4 de janeiro de 2009

O rei da praia.



Vou à praia raramente, apesar de morar em frente a uma a vida inteira. Mesmo assim, gosto de ver o mar, isto faz me sentir bem. Quando estou em cidades sem praia, fico desorientado. É como se minha bússola biológica, se é que ela existe, enguiçasse. O mar é para mim como uma imensa saída de emergência me chamando, porque ele é justamente o oposto deste lado de cá, urbano e caótico, no qual vivemos. Apenas contemplá-lo de vez enquanto, já está de bom tamanho para mim.
Certo domingo, o dia começou com um lindo sol de verão atentando-me para pegar uma praia. E por que não? Fazia tempos que eu não ia. Contudo, não gosto de ir a praias longes por causa do congestionamento. Elas são uma aporrinhação na ida e, certamente, um tormento na volta. Isto desvirtua minha idéia de lazer, que é a de que não haja nenhum estresse no processo. Chateações e aborrecimentos estão fora de questão, e não deveriam fazer parte de uma linda manhã de domingo como aquela.
Freqüentei algumas poucas vezes o Buracão, aqui perto de casa. Não gostei muito porque não sei nadar. A maré de lá puxa forte e quando as ondas quebram na praia com violência, dão um caldo em pessoas sem manha como eu. Acredite, já tomei caldos de beber água com areia e ser retorcido feito uma toalha encharcada! Certa vez, paguei um mico tomando um caldo daqueles, e terminei socorrido por uns pirralhos que brincavam ao meu lado pulando as ondas numa boa. Resolvi, então, procurar outra praia. Foi então que descobri a do Farol da Barra, onde as ondas são mais civilizadas e um completo analfabeto aquático como eu nunca passa vexame em frente de crianças.
Foi exatamente para onde fui naquela bela manhã de domingo. Caminhei pelo calçadão admirando a magnífica paisagem de biquínis deitados lá embaixo, até chegar à escada que leva à areia. É uma escada de alvenaria carcomida pelo tempo, e que à noite serve de mictório e trepadouro público aos freqüentadores do Farol. E é só isto que tira a poesia do momento. É provável que ela nunca tenha sido concertada porque talvez o Estado a considere algum tipo de ruína histórica que deva ser preservada como mais uma atração turística da cidade. Logo à minha frente, um desajeitado e solitário velhinho da cabeça toda branca tentava chegar até a areia descendo os degraus cuidadosamente. Ia se apoiando na parede lateral para não cair. Suas pernas já não eram tão firmes e por isso ele caminhava devagar, corpo curvado, escolhendo o melhor lugar para pisar naquela ruína. Debaixo do braço, carregava uma grande sacola de pano. Até eu, que tinha a metade de sua idade, precisei tomar cuidado para não rolar escada abaixo. Tenho carinho pelos velhinhos e por isso não vi problema algum em acompanhar o seu ritmo logo atrás. Fiquei atento para segura-lo pela gola da camisa a qualquer momento, caso desmoronasse. A descida levou uma eternidade mas finalmente pisamos com segurança na areia quente.
Ao pé da escada, um senhor sorridente desdentado com ares de um eunuco alugava cadeiras e guarda-sóis.
- Vai uma cadeira ai, patrão?
- Quero uma. Mas a coloque ao lado de uma mulher bem bonita e desacompanhada, viu? - brinquei.
Fui parar ao lado de uma bela morena, infelizmente com a mãe a tira-colo. A moça tinha os cabelos compridos soltos e um corpo escultural. Seios formidáveis. A mãe, ao contrário, era um prognóstico de como a filha estaria em 20 anos, gorda e cheia de celulite. Ambas foram simpáticas e receptivas à minha invasão. Sou geralmente tido como um cara agradável, aos olhos de outras pessoas igualmente agradáveis. Por outro lado, os antipáticos me acham um chato e inconveniente. Considero-me no meio termo, apenas tolerável. Conversamos sobre o que se espera em tais situações, quando estranhos tentam estabelecer alguma forma de convivência sociável. A mãe chamava-se Arlinda. A filha era Ana. Falamos, portanto, sobre o tempo e do como a praia do Farol é uma das melhores da cidade. Perdi de vista o velhinho da escada, mas não esqueci dele.
Ana era aspirante a advogada e estagiava numa ONG que prestava serviços legais de graça aos pobres. Muito bonito. Conversamos sobre as injustiças do Brasil, assunto era o que não faltava! Ganhei logo a simpatia da moça. De vez em quando eu esticava o pescoço para tentar saber como ia o velhinho. Onde já se viu deixar um senhor tão frágil ir à praia sozinho. Ele sumira na multidão de banhistas e guarda-sóis. O vendedor da água de coco passou. Comprei três, uma para mim e as outras para as meninas. Minha conversa com a filha ia bem melhor do que eu esperava. A mãe ficava ouvindo tudo desconfiada e parecia que não comia nada do que eu falava. A moça era um encanto. Mostrava-se à vontade comigo. O vendedor de toalhas passou. Comprei uma bonita canga para sentar na areia, da próxima vez. Meu gosto foi elogiado por mãe e filha. Mais um ponto para mim. Falamos sobre como se pode ganhar dinheiro trabalhando na praia. Logo em seguida, passou o rapaz do queijo qualho derretido com orégano, manda três! Falei para Ana de um lugar novo que inaugurara no Rio Vermelho e que estava na moda. Já ouvira falar e queria muito ir. Insinuei um convite. O convite propriamente dito, faria quando a mãe estivesse longe. Isso mesmo, sou um cara ardiloso! Lá veio o rapaz do espeto de camarão, quero três. O passeio já estava me saindo três vezes mais caro! Pelo visto, mãe e filha não tinham hábito de recusar nada. Um rapaz surgiu com um balde cheio de água e molhou nossos pés. Dei cinqüenta centavos. Ana foi dar um mergulho e foi aí que vacilei. Não fui. Preferi puxar o saco da mãe, não sei porque. Logo em seguida, chegou alegre uma outra filha que juntou-se a nós. Era tão bonita quanto a irmã, mais jovem. Ana exalava um certo ar libidinoso, já a irmã, não me inspirava em nada. Sentou-se ao meu lado, na cadeira de Ana. Também era conversadora. Então conversamos. Diferente da irmã, ela não era tão interessante mas falava pelos cotovelos. Não faço idéia sobre o que conversamos. Fiquei imaginando se ela devolveria a cadeira à irmã quando ela voltasse. Eu deveria ter ido junto com Ana.
Ana voltou. Estava mais bela ainda de cabelos molhados. Ao ver a irmã mais nova sentada ao meu lado conversando animada, percebi que algo de ruim mudara em sua expressão. Emudecera. Entrou água em meu barco pressenti. Ana não quis sentar e nem pediu sua cadeira de volta. Simplesmente ficou de pé mal humorada. Não entendi nada e nem era para entender. Aproximou-se da irmã recém chegada e pegou ao seu lado uma bolsa de palha da qual tirou um celular, aquele aparelhinho moderno para o qual algumas pessoas transferem todas as suas frustrações. Começou a ligar para pessoas. Havia um clima hostil velado entre as duas irmãs. Senti a tensão. Estava na cara que Ana não gostou de ver sua irmãzinha conversando comigo ou talvez ela não quisesse vê-la de jeito algum! Realmente eu deveria ter ido com Ana tomar aquele mergulho. O excesso da oferta me deixaria de mãos vazias, conclui. A menina do acarajé passou. Resolvi que não queria mais nada, temendo que a matemática fosse agora uma multiplicação por quatro. O alugador de cadeiras veio solicito trazer uma para Ana que se sentou ao lado da mãe e longe de mim. Ela continuava no celular de cara enfezada. A irmã desinteressou-se de nossa conversa e eu também. Ninguém falou mais nada. Agora eu é que iria dar um mergulho, precisava esfriar minha cabeça.
Ao pisar na água deliciosamente fria, tive uma visão surpreendentemente agradável. O velhinho, isto mesmo, aquele velhinho dos passos trêmulos da escada, flutuava lépido e fagueiro ao sabor das suaves ondas, com a ajuda de um salva-vidas amarrado ao pescoço. Sua expressão era a de pura felicidade e vitória. A julgar pela situação a qual eu me colocara, ele era me smo o grande vencedor do dia. O rei da praia. Não muito distante, em sua retaguarda, uma mulher jovem o observava feito um anjo da guarda.



Rio Vermelho, 16 de dezembro de 2008.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Moça de vestido de chita rendado.

Meu pai nasceu e foi criado no fim do mundo. Numa fazenda no esquecido município de Cajapió, na baixada maranhense. A região pantanosa e de floresta amazônica, rica fauna e flora exuberante o impressionaram tanto e a tal ponto que estiveram presentes em sua pintura até final da vida. No fundo, meu pai jamais deixou de ser aquele menino do mato, contemplador das coisas da natureza. Quem já teve a oportunidade de ver um de seus quadros, sabe do que estou falando.
Eu pouco soube de sua família, além de que eram muitos os irmãos, e que talvez nem meu pai conhecesse a todos. O meu avô era algum tipo de fiscal sanitário e animal. Passava muito tempo fora de casa viajando pela região, visitando fazendas. A mãe ficava, cuidava da família numerosa e da fazenda. Meu avô foi-se cedo. Teve um dos dedos da mão estrangulado ao laçar um garrote. Semanas depois, morreu de gangrena. Ocasionalmente meu pai falava de sua gente com carinho ao recordar de alguma estória da família. Apesar disso, nunca foi muito apegando a eles. Foi morar em São Luis com uma tia quando era jovem e nunca mais retornou. Quando minha avó morreu, eu já passava dos 20 e me surpreendi por saber que ela sempre fora viva, apesar de eu nunca ter perguntado por ela ou qualquer outro membro da família de meu pai. Alguém ligou de São Luis para dar a notícia no meio da noite. Papai foi dormir calado com o choro preso na garganta. No dia seguinte, enviou dinheiro para ajudar no enterro. Nos dias que se seguiram, ele se lembrou de sua falecida mãe e de sua infância em Cajapió. Certa vez, o ouvi contar a seguinte estória ainda dos tempos de fazenda.
Naquele tempo, automóveis eram ainda uma raridade na região, ou melhor dizendo, o lugar era tão inóspito que quase não haviam estradas pavimentadas ou de barro para veículos motorizados de 4 rodas. Certa vez, ao cair da noite, meu pai selou um cavalo e vestiu sua melhor roupa e botas lustradas, e seguiu montado num animal até uma fazenda não muito distante, onde haveria uma festa. A noite de lua cheia iluminava a maior parte do caminho. Em alguns trechos, a mata se fechava quase impedindo a passagem de luz, ficando por conta do instinto do animal, a tarefa de acertar o caminho e de levar meu pai com segurança até seu destino final. A noite era tranqüila e só se ouvia o suave trote do cavalo quebrando o silêncio da floresta. Havia chovido muito na noite anterior, e por isso ainda era possível sentir o cheiro de terra molhada. Ao passar por uma modesta casa iluminada por lampião quase à beira da estrada, um velho pé-duro se despertou de sua preguiça e ensaiou alguns latidos mas sem se dar ao trabalho de sair do lugar. A dona de casa largou seus afazeres na cozinha e correu até a porta pra ver quem vinha, acompanhada de duas crianças catarrentas que se agarravam à bainha de sua saia.
Uma pessoa da cidade, pouco afeita a este tipo de aventura, poderia julgar meu pai um inconseqüente, fazendo uma jornada daquelas no meio da escuridão. Acredite que fazer isto era mais seguro que andar a pé numa calçada de cidade grande, hoje em dia. Esta era a realidade de quem morava em zonas rurais tão isoladas, enfrentar a floresta e os elementos da natureza eram coisas que se fazia todos os dias sem se dar conta de que estavam fazendo algum tipo de ato de bravura.
Quando meu pai se aproximou de seu destino, logo ouviu a banda trocando animada ao longe. Viu também a claridade da luz elétrica gerada pelo motor de querosene. Ao cruzar a soleira da fazenda, sentiu o cheiro de carne queimando no braseiro. A fome apertou-lhe no estomago. Cavalgou mais alguns metros e apeou debaixo de uma mangueira onde outros cavalos amarrados matavam a sede num grande bebedouro de madeira e comiam capim novo. O local cheirava a urina e estrume fresco. No pátio em frente à sede, a festa corria animada. Banda de música de um lado, mesa farta de comida do outro e no meio do caminho, todo mundo dançando agarradinho, mas respeitosamente. Meu pai pôs os olhos numa moça bonita arrumada com vestido de chita rendado, meio perdida no salão. Gesto de galanteio, seguido de convite para dançar, foi timidamente aceito. Dançaram a primeira música, em seguida a segunda e na terceira, os dois já se sentiam na intimidade. Ao final da música, meu pai puxou a moça pela mão e levou-a para tomar um refresco e comer qualquer coisa. Era a hora de levar uma conversa com ela, de saber a sua graça, quem era a sua família e por que bandas morava. Roubaria um beijo, se tivesse sorte. Naqueles tempos, não se comia tão fácil como nos dias de hoje. Nem bem começou com seu interrogatório, foi interrompido por um senhor de olhar grave. Era um tio.
- Floriano, vamos ali ter uma palavra? - interrompeu cerimonioso.
- Claro, tio. Eu já volto. - desculpou-se com a moça. Respeitava muito o tio.
Os dois homens se afastaram até próximo de uma cerca de madeira. A moça ficou aguardando.
- Como vão todos de casa? - quis saber.
- Bem. - respondeu monossilábico. Queria voltar logo para a moça.
- Fez boa viagem?
- Fiz, sim senhor.
- Tá gostando da festa?
- Tô sim. Tá animada.
- Reparei que você se interessou por aquela rapariga. - olhou em volta.
- Ela é muito bonita, tio.
- Ouça bem. Tenha muito cuidado com ela. Não lhe encoste um só dedo. - disse quase ameaçador.
- Mas por que isto, tio? - perguntou meu pai desapontado.
- Porque ela é sua irmã!


Rio Vermelho, 12 de dezembro de 2008.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Ano novo, imposto velho.


Decidi fazer uma virada de ano diferente, para variar. Fui com minha sobrinha Isabela e sua filhinha Lua assistir à tão falada queima de fogos na Barra. A pequena de nove anos nunca tinha visto nada igual e me senti feliz em fazer parte deste momento único de sua jovem vida. O primeiro show de fogos é como o primeiro sutiã, nunca se esquece.


Depois da ceia, fomos enfrentar a jornada do Rio Vermelho até a Barra, são quase 8 quilômetros a pé. Eu bem que tinha prometido caminhar mais em 2007 e finalmente cumpria a minha promessa! Coloquei champanhe gelada na sacola ecologicamente correta e seguimos adiante. Eram quase dez quando saímos de casa e encontramos as ruas quase desertas até chegarmos ao Largo de Santana. Quisera eu que o Rio Vermelho fosse sempre assim, aquela atmosfera de cidade fantasma. Na praia, um grupo deixava oferendas a Iemanjá na esperança de ter pedidos atendidos. Pelo caminho, pessoas vestidas de branco surgiam de todas as partes, em direção ao mesmo destino. Só nossas blusas eram brancas. A alegria da festa era visível em cada rosto anônimo na rua. A queima de fogos do Farol da Barra tornou-se a grande pedida de final de ano. Não é à toa que o espetáculo atraia multidões, pessoas visitam Salvador só para assisti-lo. Lua tinha de ver esta maravilha.


Logo chegamos à praia da Paciência. Um esperto produtor teve a brilhante idéia de fechar a enseada e montar no local uma festa de fim de ano regada à areia e água do mar, ao preço módico de setenta reais por pessoa. Não sei porque não sou eu quem tem estas idéias engenhosas. Pelo visto, ganhar dinheiro fácil não é a minha praia! Pessoas faziam fila para entrar na festa. Seguimos adiante.


Chegamos a Ondina, metade do caminho. Havia muita gente na avenida ao longo da praia, interditada para automóveis. Algumas famílias improvisaram ceias na praça em frente ao Instituto de Reabilitação e o mar. Levaram cadeiras e mesas de armar que esbanjavam fartura e saúde. Quem tinha carro com o som potente, tratou de montar seu próprio trio-elétrico com o volume no mais alto grau, no estacionamento da praça em frente à calçada. Havia música para todos os gostos tocando ao mesmo tempo. Era uma verdadeira salada musical. O som alto doeu em meus tímpanos. Isto me fez lembrar porque evito as festas populares de Salvador. Apressamos o passo para fugir dali. Fico feliz de não ter como vizinho nenhum daqueles amantes de música. Bebia-se muito. A tal da lei do bafômetro, pelo visto, foi parar no chinelo. Torci para que os anjos da guarda levassem todos de volta para casa com segurança. Alguns gatos pingados dançavam animados. Outros falavam ao celular desejando boas entradas a amigos e parentes distantes. Uma moça falava aos berros no aparelhinho ‘minha tia eu já estou bêbada! minha tia eu já estou bêbada!’ Provavelmente não era invenção sua. Havia vendedores de bebida e churrasquinho de gato por todos os lados disputando a freguesia. Lembrei de uma amiga possuidora de mais de uma dúzia de felinos e que sempre se queixa da falta de grana, ela bem que poderia estar fazendo um dinheirinho extra naquela noite. O cenário em Ondina era de festa familiar. Como o pobre se diverte com tão pouco. Aposto que as festas chiques e pagas em hotéis a preço de ouro e a prestação não são tão animadas. Continuamos andando. Lua se queixava de dor nos pés. Quis tirar as sandálias e continuar descalça, mas foi sabiamente impedida pela mãe. Lembrei que provavelmente vinte anos antes Isabela faria a mesma coisa e ninguém conseguiria impedi-la. Irônico, não? Mãe e filha são tão novas, pareciam duas irmãs andando de mãos dadas.


A noite estava fresca e agradável. Chegamos à Barra quase esbaforidos uma hora antes da virada, juntamente com uma multidão. No caminho, passamos em frente ao Clube Espanhol onde Ivete Sangalo dava o seu famoso show. Lembro que vi um anúncio gigante colado na lateral de um prédio durante o ano inteiro. Era impossível não ouvi-la. Sua voz soava como a de alguém que tivesse corrido dois lances de escada para atender ao telefone. Achei aquilo medonho. Não deviam deixar a Ivete subir escadas correndo antes dos shows!


Eu, Isabela e Lua ficamos num ponto entre o Morro do Cristo e o Espanhol. Podíamos ver a balsa de onde os fogos seriam lançados. Perfeito. Sentamos na balaustrada em frente ao mar, era como estar num camarote. Enquanto esperávamos pelo grande momento, jogávamos conversa fora e assistíamos os passantes que queriam chegar até mais próximo ao Farol da Barra. A segunda atração da noite seria um show musical num palco montado no gramado em frente ao Farol, depois da queima de fogos. Não o incluímos em nossa programação. Um espetáculo apenas já era o bastante. Para ser franco, detesto shows de música. Raramente vou a algum. Fico ansioso quando eles se aproximam do final e o músico ainda canta um bis. Parece que aquilo não vai ter fim nunca. Detesto a parte do bis. O show ideal para mim é aquele que o cantor já começa cantando o bis e todos vamos embora logo depois da última música. A minha regra para ir a shows é a seguinte, nunca ir a shows cujas músicas sempre tocam nas rádios e programas musicais de TV. Para que pagar por algo que posso ouvir de graça no conforto de meu lar? A propósito, não tenho rádio e só assisto filmes e seriados. Ao nosso lado, havia uma simpática família, pai, mãe e dois meninos não maiores que seis anos. Em certo momento, fui surpreendido com mãe dando aula de boas maneiras ao menor, ensinado-lhe a fazer xixi em local público e justamente ao meu lado! Imaginei como ele seria o orgulho da mamãe quando virasse um adulto. Um casal logo à frente dava fim ao estoque de beijos do ano antes de chegar o novo carregamento de 2009. Parecia que tinha sobrado muito pois eles não paravam nunca. Boa forma de se despedir do ano velho. Um casal de velhinhos passou de mãos dadas, cada um com sua bengala. Faltavam só cinco minutos para a virada. Lua começou a preparar a garrafa de champanhe para ser aberta, tirando o papel laminado e quando fui ajudá-la com o lacrede arame, a rolha estourou longe! Todos riram em volta. Ainda bem, porque a champanhe deu um banho em quem estava por perto.


Para a alegria geral, o espetáculo começou. Durante os quinze minutos que se seguiram, o céu se transformou num gigantesco caleidoscópio de luzes, cores e magia. Ficamos hipnotizados. De todas as invenções humanas, não há algo que mais encante aos olhos que os fogos de artifício, ele nos retorna à nossa infância. Uma explosão e logo surgiu um enorme cogumelo brilhante rosa, seguido de outro dourado e de mais outro verde sobre o mar iluminado pelo colorido. Em seguida, uma flor cintilante desabrochou no céu. Outra explosão, e formou-se uma bola de chuviscos brilhantes que foi aumentando de tamanho e crescendo parecendo avançar e cair sobre nós. Difícil por em palavras tudo que assistimos embriagados com tanta beleza. Lua não piscava um só olho de tão maravilhada. Isabela ria feito uma criança. Até eu me senti criança de novo com todo aquele brilho de cores. A cada nova surpresa, ouvia-se os suspiros emocionados da platéia. Uma senhora alegre ao meu lado dava palminhas e pulinhos de contentamento.


- Está gostando, senhora?


- Isto é lindo!


- Aproveite bem pois estão queimando uma fortuna em impostos!


- É verdade. - disse pensativa.


- Ano que vem, o espetáculo será ainda maior, graças ao aumento de 150% do IPTU já proposto!


- Nem me fale! Não sei de onde vou tirar tanto dinheiro.


- Não pense nisso agora. Feliz ano novo!



Rio Vermelho, 1 de janeiro de 2009.