quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O Filhote

Numa certa ensolarada manhã de dezembro em que todos ainda dormiam aqui em casa, ao passear distraidamente pelo jardim, fui surpreendido com a presença de um pequeno pássaro pousado no chão próximo ao pé de framboesa. Habituado a vê-los empoleirados em galhos inatingíveis ou voando ligeiramente pelo espaço, achei aquela situação curiosa. Devo admitir que a única ave cujo conhecimento possuo algum domínio é a galinha e, assim mesmo, em seu estado assado ou ao molho pardo, que são as minhas especialidades. Por isso, eu não soube identificar se aquela seria um pardal ou um bem-te-vi. Observei aquele bichinho que se mantinha imóvel, apesar de minha presença ameaçadora, como se me ignorasse ou se fingisse de pedra ou toco de pau para não ser percebido pelo predador, pois é esta artimanha que lhe providencia a natureza para garantir-lhe a sobrevivência. Sua penugem era da cor de palha seca quando misturada ao pó da terra quando chove e estava eriçada, dando-lhe o aspecto de um novelo de pequenos e finos gravetos. Pobre criatura, deve estar doente, pensei sem saber como agir.

Alguém mais bem ilustrado aqui de casa deu uma olhada e descreveu-o como um filhote de sabiá que despencara do ninho e que provavelmente este ainda não dominava a arte de voar. Que situação daquele indefeso filhote, fiquei imaginando como eu poderia fazer por ele. Numa pequena vasilha coloquei água fresca que pus ao seu lado juntamente com um pedaço de banana, aquilo deveria ser de alguma ajuda.

Talvez a mãe daquele pequeno pássaro tivesse lhe orientado a não falar ou a aceitar coisas de estranhos e, por isso, ele ignorou a comida que lhe deixei. Vez por outra, ela própria, presumindo que fosse a mãe e não o pai ou qualquer outro parente mais próximo, vinha trazer-lhe alimento que colocava diretamente em seu bico. Até nisto a natureza é prodigiosa, ao prover os animais de amor por aqueles que ainda não são capazes de tomar conta de si mesmos. Fiquei maravilhado com a aula de ciências naturais.

Nós aqui de casa, que somos afeiçoados por animais, logo nos compadecemos por aquela pequena ave indefesa e vez por outra chegávamos até a janela para dar uma olhada, torcendo para que ela tivesse voltado para a segurança de seu ninho, escapado das garras de algum predador. Alguém viu um gavião rondando a vizinhança e se pôs de guarda com uma vassoura para afugentá-lo. E quando a escuridão da noite chegou escondendo-a de nossa guarda, temi por sua fragilidade ante as criaturas noturnas.

E bem cedo na manhã seguinte, quando o procurei no lugar onde esteve o dia todo, para minha tristeza, não o vi. E num ato contínuo, escrutinei com um pingo de esperança até o mais recôndito recanto do nosso jardim e me alegrei ao revê-la a poucos metros de onde estivera todo o tempo no dia anterior, na mesma posição de estátua, na mesma solidão, desta vez, ao lado do pé de lima. E o dia repetiu-se tal como no anterior, com as vindas e idas de sua mãe para lhe trazer alimento e a nossa constante vigia.

Foram cinco dias de aflição e expectativa e, em cada manhã, a mesma emoção de vê-lo firme resistindo ao tempo e à solidão. Quanto mais aguentaria aquela criaturinha, era uma dúvida que me intrigava. Estava claro que a sua volta ao ninho dependia da capacidade de voar que ela ainda não dominava, apesar de já possuir o equipamento necessário, asas e penas. Talvez fosse questão de poucos dias até que fizesse o seu primeiro voo solo até o ninho.

Finalmente, numa certa manhã, encontrei-a no mesmo lugar do dia anterior, inerte como uma pedra, pobrezinha. Foi poupada pelos predadores, mas não resistiu à espera para aprender a dar o seu primeiro voo da esperança. Foi enterrada junto com as folhas secas de nosso jardim.


Rio Vermelho, 24 de dezembro de 2015.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

A Fruta-Pão

Das distantes reminiscências de minha infância, eu ainda me recordo de um frondoso pé de fruta-pão que existia no quintal da casa de um coleguinha da escola, meu vizinho. Eu não devia ter nem cinco anos e fiquei fascinado ao ver pela primeira vez na vida o fruto daquela árvore bonita que era redondo, verde e grande como uma bola de futebol, pendendo da árvore aos montes feito decoração natalina. Mais abismado ainda, eu fiquei quando a mamãe me contou que aquela coisa se chamava fruta-pão. Na pueril imaginação da criança que ainda estava descobrindo as coisas básicas do mundo, eu logo imaginei que o pão que vinha da padaria do Manolo saía de dentro daquela fruta. O encanto pela fruta, no entanto, se desvaneceu quando a mamãe colocou um pedaço cozido em minha boca. Fiz uma careta de nojo e nunca mais quis comer aquela coisa insipida e sem graça.

A caminho da padaria onde costumo fazer compras, vejo um pé de fruta-pão no quintal de um vizinho do bairro. Este tipo árvore, como os sapotizeiros, pés de cajá, ingá, graviola e fruta-do-conde, cederam a paisagem urbana aos tediosos prédios de apartamento. Observo com curiosidade aquela árvore carregada e me pergunto se o meu paladar teria amadurecido com o passar dos anos e que, se agora, eu colocasse um pedaço na boca, eu iria gostar e achar que aquilo era a maravilha que muitos diziam.

O vizinho vai dentro de casa e de lá traz uma bela fruta-pão no ponto. Agradeço a sua generosidade e penso em retribuir-lhe com as graúdas e adocicadas limas do meu jardim, cuja árvore já está carregada e promete uma safra recorde lá pelo mês de março. Já estamos em inicio de dezembro e como nos dias de hoje o tempo corre à velocidade 3G, não tardarei a retribuir-lhe a gentileza. Ponho alegremente a minha fruta-pão debaixo do braço e sigo para a padaria.

A sorridente senhora que me atende sempre ao balcão, ao notar a minha fruta-pão comenta enquanto os olhos buscam uma doce recordação em sua memória que nunca mais tinha comido uma e que elas eram tão gostosas. Minha boca se encheu de esperanças.

E quando voltei em casa, dividi a fruta ao meio com a ajuda de uma faca e retornei à padaria o mais rápido que pude. E a melhor parte desta história toda, foi a sincera expressão de surpresa e contentamento que fez a balconista ao receber o pedaço de fruta-pão de minhas mãos. Como gestos tão simples são capazes de tornar feliz o dia de uma pessoa e, também, em algo memorável. Eu também ganhei o meu dia.

Quando voltei para casa, a fruta-pão já estava cozida e fumegante à minha espera na mesa do café, que aqui em casa é servido às cinco horas da tarde e já é o nosso jantar. Minha boca se encheu de água só de imaginar como seria comê-la com o café fresco e quente. Pus na boca um pedaço besuntado com manteiga que se derreteu e foi como se eu tivesse voltado à minha tenra infância. Descobri que o meu paladar em nada tinha mudado, nunca mais voltarei a comer uma fruta-pão em minha vida, mas que frutinha mais em graça!


Rio Vermelho, 1 de dezembro de 2015.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O Duro Dia de Trabalho de Uma Funcionária Pú-blica

Mal se passou meia hora desde que pôs na cadeira o traseiro e os olhos já procuravam o grande relógio de parede à sua frente. Ao verificar que o dia estava apenas começando, contraiu os lábios com uma expressão de desânimo, só de imaginar as longas horas que ainda lhe restavam. Num sinal de desespero, fez uma prece para que o dia passasse logo, ao olhar indignada para os dois ponteiros que pareciam estar congelados.

Ana Rita orgulhava-se de ser uma funcionária pública e de trabalhar num obsoleto departamento onde nada acontecia, ou melhor, onde não havia quase nada o que fazer. Era o emprego dos sonhos, um salário que não era de se jogar fora, estabilidade no emprego, aposentadoria integral garantida e quase nenhum serviço. Naquela repartição de nome comprido e pomposo, abundava de funcionários que mal davam conta do escasso trabalho. Então, só lhe restava bater o ponto na hora certa ao chegar e arrumar-se meia hora antes de ir embora. Aquelas eram tarefas que ela fazia a satisfação de dever cumprido e ao mesmo tempo com uma expressão de martírio.

Para ajudar a passar o tempo, a cada meia hora, ela levantava-se de sua mesa e ia até o final do corredor, onde um bebedouro lhe aguardava. Servia-se com um copo como se estivesse morrendo de sede enquanto comentava com outro colega que beber bastante água fazia muito bem aos rins, embora aquela valiosa informação científica tivesse sido obtida da sessão de curiosidades de uma revistinha de palavras cruzadas.

Enquanto o tempo se arrastava, ela pensava no noivo, organizava mentalmente a festa do casamento e fazia uma lista do enxoval e de tudo que precisariam comprar para montar o lar. Queria que tudo fosse novo em folha, dava azar começar um casamento com um fogão ou uma geladeira já usados, imagine pôr na sala um sofá que já tivesse um passado. Segundo as suas palavras, o noivo é que possuía um emprego de verdade, era auditor fiscal e com o que ganhava dava para comprar tudo novinho à prestação. Ele lhe daria a segurança que sempre sonhara e uma família feliz.

Em frente à sua mesa e de costas para ela, sentava-se outra funcionária. A posição das duas mesas costumava ser de frente para a outra, até o dia em que as duas colegas se desentenderam. Por causa de que mesmo? Elas nem mais se lembravam. Entretanto, o orgulho ferido de cada uma fez com que parassem de se falar e o assunto foi resolvido de maneira prática: a outra virou a sua mesa de frente para a parede e ficou de costas para ela.

No final da manhã, Ana Rita olhou para a sua mesa como se não a reconhecesse e viu com surpresa sobre esta uma pequena pilha de papéis. Era algum serviço que aguardava a sua atenção. Esta sua surpresa não foi causada pelo fato de não ter notado antes aqueles papéis, mas por estes ainda estarem ali desde a semana passada. Então, numa atitude diligente, aproximou a pilha para perto. Procurou pela caneta na gaveta da mesa e antes de começar a dar andamento ao trabalho, lembrou que precisava tomar um pouco de água para manter os rins saudáveis. Pôs a pilha de papéis de volta em seu antigo lugar. Era interessante como sempre que se punha a iniciar uma tarefa, sentia um pouco de sede ou vontade de ir ao banheiro para se desfazer daquela água toda que ingerira ao longo do dia.

Quando chegava a hora de ir embora ao final da tarde, ela já estava pronta há muito tempo. Registrava pontualmente a sua saída e ia encontrar o noivo que a aguardava no lugar de sempre. E quando ele lhe abraçava afetuosamente e lhe perguntava como fora o seu dia, ela, então, lhe lançava um olhar martirizado e respondia com a voz quase falhando que estava com dor de cabeça de tanto trabalhar e revirava os olhos quase desfalecendo.

Rio Vermelho, 4 de novembro de 2015.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

O Barato Orgânico

A feirinha orgânica onde ocasionalmente compro frutas e verduras possui uma atmosfera agradável, meio zen e meio coisa de comércio mesmo. Para uns, aquilo é um prolongamento de um estilo saudável de vida que acreditam, mas, para outros, é apenas um meio de sustento. Seus frequentadores são pessoas afáveis de fala mansa, pele bonita proporcionada pelo hábito de comer alimentos saudáveis e estilo de se vestir que não segue nenhuma tendência de moda ou grife famosa, a não ser o prazer de se vestir do jeito que se sente bem.

A feira tem início aos primeiros raios de sol e cococoricar de galos e vai até o meio da manhã, quando a xepa, um tomate amassado ou alface murcha, é disputada por fregueses desejosos de um bônus extra que lhe proporcionará o prolongamento da vida por só consumirem alimentos saudáveis e por também acreditarem realmente que podem sucumbir ao ingerirem comidas feitas com ingredientes produzidos pela agroindústria. Eu, que me considero um eclético na hora de comer, não tenho ambições de morrer saudável ou de viver mais que o prazo de validade que o meu corpo poder me oferecer sem sacrifícios.

A meia dúzia de feirantes que trabalha ali recorda de mim, apesar deu não ser um freguês frequente e eu lembro de seus rostos, mas não recordo de seus nomes com a mesma facilidade com que sei o do senhor Cláudio, o rapaz que varre a minha rua. No entanto, naquele dia, havia uma feirante novata e que destoava do grupo. Ela era bem mais jovem e franzina, possuía o olhar inocente de uma garotinha. Não tinha pinta de produtora agrícola.

Aproximei-me de sua banca e vi que em lugar de frutas ou legumes, ela expunha pequenos frascos de plásticos de tamanhos variados com rótulos estrangeiros. Esta pequena ruptura do padrão da feirinha acontece com frequência e, por isso, há semanas que está lá um vendedor de sabonetes orgânicos ou de utensílios de cozinha feitos de bambu, este igualmente feito de material orgânico.

— Para quê serve isto? – perguntei examinado um dos frascos já na minha mão.

— Este é um adubo líquido orgânico importado da Holanda.

— Ah! – respondi.

Coloquei o frasco de volta e peguei outro com a mesma curiosidade.

— Este é um fertilizante. – ela disse com a agilidade de uma vendedora solícita e experiente.

Examinei um cubinho que parecia feito de lã e nem precisei perguntar o que era.

— Isso serve para fixar as raízes de uma muda. – ela explicou de forma didática.

— Hum.

Mas é só isto, pensei olhando ao redor. Ela não planta nem uma salsinha ou manjericão utilizando estas maravilhas importadas para demonstrar a sua eficácia?

— E você, o que cultiva? – perguntei. Ela mais parecia uma estudante universitária fazendo um bico.

— Eu planto maconha. – respondeu à queima roupa.

E com a mesma naturalidade com que ela me respondeu, perguntei:

— E você tem aí o fruto de seu cultivo para a venda?

— Não, a sua venda é ilegal e ainda não foi liberada. – disse com um sorriso otimista. Talvez ela só aguardasse o comércio da erva ser liberado num futuro bem próximo para poder desovar as suas safras estocadas.

— Não tem nem aí nem uma amostra grátis, não? – insisti malicioso.

— Infelizmente, só planto para o meu consumo. – ela sorriu mais uma vez.

Seguiu-se um silêncio de minha parte por falta do que dizer e ela mantinha-se olhando para mim aguardando até que me veio uma inspiração.

— Hum... E o seu produto é de qualidade?

— ô, de excelente qualidade! – ela respondeu orgulhosa.


Rio Vermelho, 19 de outubro de 2015.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A Rainha do Lar

        Rai é a primeira a estar de pé, embora tenha dormido mal na noite passada. Ainda assim, ela coloca na cara um sorriso e vai para cozinha aprontar o café da família enquanto pensa no cardápio do almoço. A rotina de mais um dia começa pela cozinha. Depois vai para a área de serviço onde limpa a sujeira do cachorro e coloca em cada vasilha água e ração. Olha para cima e ao ver o céu azul límpido prometendo mais um belo dia, uma sensação de otimismo invade o seu coração. O que fará para o almoço, pergunta-se angustiada lembrando-se dos pedaços de frango congelados no freezer. Este é apenas um dos seus grandes problemas do seu pequeno mundo.

        Já é quase sete horas e Marquinho ainda não levantou. Ela vai e bate na porta do menino para que não se atrase para a escola. Em poucos instantes, o silêncio da casa é quebrado pela movimentação de seus habitantes preparando-se para repetirem a rotina do dia anterior. Sentam-se à mesa para comer a primeira refeição do dia. Enquanto isto, Rai serve a um e a outro como num restaurante, vai buscar um remédio que alguém deixou no quarto ou o óculos que ficou no gabinete. Alguém quer ovos mexidos ou que esquente o leite. Um lhe pede que coloque café na xícara. As pessoas estão sempre lhe pedindo alguma coisa que não lhes cairia pedaço algum se elas mesmas o fizessem. Ela só terá tempo para tomar sossegada o seu café da manhã depois que todos forem embora.

        Se você alguma vez ouviu a expressão “chupa cana e assobia”, pode imaginar o que é começar a preparar o almoço ao mesmo tempo em que arruma camas, varre o chão, limpa banheiros, coloca a roupa suja na máquina, passeia com o cachorro, tira a poeira dos móveis da sala, prega um botão em uma camisa, água as plantas do jardim, estende a roupa no varal, conversa muito ao telefone, termina de fazer o almoço para servi-lo à família que já está de volta em casa tirando o seu muito improvável sossego.

        E enquanto comem à mesa, não param de chamar seu nome e aí o inferno começa. Alguém pede água gelada, outro quer o remédio. Ela atende a um e ao outro prontamente enquanto escuta fragmentos da conversa. Ela gostaria de dar sua opinião, mas acha melhor não passar por abelhuda, mesmo sendo considerada como membro da família. Depois que todos comem ela recolhe os pratos e traz a sobremesa antes que lhe peçam.

        Serviço para fazer é o que não falta e quando faz, mais aprece. Mas o que lhe deixa magoada é ninguém reconhece o seu trabalho, nunca ninguém repara quando a casa está limpa e arrumada, só observam a poerinha num canto que a vassoura não passou direito ou quando uma manga da camisa não ficou bem passada. Ela escuta com atenção quando alguém vem choramingar nos seus ouvidos os seus problemas, até arrisca a dar conselhos. Mas quem se importa em ouvir os seus?

        Rai trabalha como um animal achando que é quase como um membro da família e ao custo de um salário mínimo por mês.

Rio Vermelho, 20 de setembro de 2015.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O Filho Caçula

Por trás do largo sorriso desenhado na boca desdentada, seu Aurelino anuncia o seu produto nos dias mais quentes. Ele, que tem a importante função social de abrandar os rigores do calor, vende picolés para quem dispuser no bolso de alguns trocados. É claro que há aqueles incautos que saem à rua desprovidos do vil-metal, mas nem por isso deixam de ficar sem levar a guloseima, compram-na fiado. Apesar dos setenta e tantos anos, seu Aurelino registra aquelas dívidas na memória que continua afiada como a de um garoto de dezoito anos.

Seu Aurelino orgulha-se de sua profissão e de vender o melhor picolé da cidade que é produzido na vizinha Irecê. O mais gostoso é o de coco, mas têm também de manga, goiaba, umbu, limão e seriguela. Quem prefere sabores mais sofisticados como chocolate, creme holandês ou amendoim, não morre de calor porque tem sempre alguns no fundo do carrinho.  Seus picolés são cremosos e refrescantes, de dar água na boca, perfeitos para abrandar os dias abafados da pequena Lençóis, apesar de que estes são igualmente muito consumidos tanto no verão como no inverno.

Seu Aurelino, que está sempre de bom humor, gosta de empurrar o seu carinho de picolé pelas estreitas e tortuosas ruas da cidade, por seus bairros mais longínquos e de oferecê-los à freguesia que, quando não está com pressa, aproveita para ter com ele um instante de prosa enquanto chupa o picolé. Uma metade do tempo do picoleteiro é gasto com as vendas do gostoso gelado e a outra com colóquios animados. Alguns lhe trazem notícias de longe, outros reclamam da política, uns se queixam da vida, outros reclamam de doenças, alguns preferem falar da vida alheia. Seu Aurelino mais escuta que fala e da boca banguela tem-se a impressão de que esteja sempre sorrindo, embora às vezes o assunto fosse sério.

O vendedor de picolé é o filho caçula que ainda vive com os pais e que já beiram os cem anos de idade. O menino nunca casou ou arrumou companhia, apesar de ter tanta moça boa na cidade. Isto faz com que os pais se preocupem com Aurelino, pois quando morrerem, quem é que vai tomar conta dele?

Seu Aurelino conta à moça branquela de São Paulo, que chupa um picolé enquanto aguarda pelo ônibus sentada na escadaria da rodoviária, que recebeu uma proposta para ir trabalhar em Salvador. Isso foi na semana passada. Ele queria muito aceitar aquele emprego, nunca esteve numa cidade tão grande, mas papai e mamãe não deixaram que ele fosse porque Salvador está uma cidade muito violenta, lamenta.


Rio Vermelho, 4 de setembro de 2015


quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O Azul é a Cor Mais Forte

A mãe veio de férias e trouxe junto a filha mais nova. Queria mostrar à menina as ruas onde aprendera a falar o português com sotaque baiano quando tinha a mesma idade da adolescente. Mãe e filha pareciam cópia fiel da outra no quesito beleza, guardada as devidas proporções da idade. A filha era uma meninota alta e robusta, de corpo forte como uma guerreira viking. Mas o que mais chamava a atenção sobre ela era o seus longos cabelos lisos, eram de um azul infinito e inocente como a cor de seus olhos.

A mãe fazia questão de mostrar tudo à filha, desde como chupar a manga sem se lambuzar até como dizer danke! em nossa língua pátria. A menina gostou de andar de ônibus e de ouvir batucada no Pelourinho. Achou divertido caminhar nos passeios esburacados da cidade, era como se estivesse fazendo uma aventura radical urbana. Em sua terra natal era tudo muito certinho e organizado e aquela bagunça dava ares de aventura às suas férias escolares, ia ter muito o que contar quando voltasse para casa. A menina enamorou-se pela cidade negra e esta apaixonou-se por ela. Não havia um homem que não parasse para admirar a beleza exótica daquela moça alta, de peito estufado, caminhar desajeitado de menina moça e cabelo cor de turquesa. Alguns mais afoitos arriscavam dizer-lhe galanteios, ao que a menina enrubescia e lhes respondia com um tímido obrigado.

Às vezes a mãe tinha um pouco de ciúmes daquela atenção toda dispensada só à filha pequena. Talvez se ela pintasse os cabelos de verde limão fizesse até concorrência à menina, pois ela não era uma coroa de se jogar fora, aguardava ainda os encantos de sua juventude.

No centro histórico da cidade, um vendedor de fitas do Senhor do Bonfim aproximou-se de assalto, como é de seu costume, e amarrou ao pulso da menina uma fitinha. Depois ficou olhando para ela com um olhar de peixe morto. A mãe interferiu: “Por que está olhando assim para a minha filha?” O vendedor de fita, que tinha a língua afiada, respondeu logo à queima roupa: “É sua filha? A madame caprichou!” E como se não bastasse a impertinência, ainda perguntou com a maior cara-de-pau: “Tia, senhora quer ser a minha sogra?”

Rio Vermelho, 14 de agosto de 2015.


domingo, 9 de agosto de 2015

O Maior Sofredor do Mundo

Deitada de barriga para cima e de mãos cruzadas sobre o peito, parecia uma finada. Ela suspirava entediada e olhava para o teto com a indiferença de quem procura uma teia de aranha ou imperfeição que já não conhecesse. A cada instante consultava o smartphone à mão para certificar-se de que este ainda estava funcionando, caso ele lhe telefonasse a qualquer lampejo de instante. Gysleine estava irremediavelmente apaixonada.

Consumida por aquela ardente e infinita espera, ela se perguntava se era errado. Ele era um primo, será que aquela relação carnal a mandaria para o inferno? O que seria pior naquele caso meio incestuoso, o fato de ele ser um parente ou de ele ser um homem já comprometido? Seja como fosse, aquele duplo pecado causava-lhe arrepios e um prazer indescritível por estar fazendo a coisa proibida, logo ela, uma moça tão certinha e incapaz de sair da linha por mais inocente que fosse a transgressão.

Gysleine se perguntava como fora parar nos braços do primo e, pior de tudo, como lhe cedera seus favores tão facilmente. Ela que sempre se orgulhava de ser uma mulher que não dava fácil para ninguém, mas no caso do primo, ele nem precisou pedir uma segunda vez. Isto talvez porque, ela presumia, ele fosse família e sabe como são estas coisas, a família sempre vem antes de tudo, não teve como negar o pedido de um parente.

Outra coisa que também estava incomodando Gysleine era o fato do primo ser um homem já comprometido, quase noivo de anel no dedo. Ela sempre soube disto, mas a carne não resistiu ao apelo do parente. Ela imaginou que se fosse apenas aquela vez..., mas houve uma segunda e uma terceira e a coisa perdeu o controle, quando se deu conta, já tinha virado amante do primo, porque era isto que ela era, concluiu, se não era a titular, só podia ser a amante. Estava tendo um tórrido caso com um primo que era comprometido com outra. Certamente que agiam às escondidas, o que só lhe causava um misto de prazer e de sentimento de culpa. Caso a família descobrisse, por certo reprovaria aquela sem-vergonhice, ia ser o fim do mundo. No entanto, só três indivíduos estavam a par daquele triangulo: ela, ele e a traída.

E como a traída tomara conhecimento de que o quase noivo estava dividindo a sua atenção com mais alguém? Bem, ele mesmo achou que já era a hora de informá-la, quando percebeu que estava trocando o nome de uma pelo da outra justamente no auge do calor sobre os lençóis. Bem antes disso, no entanto, ela observara que ele andava esquisito, não era mais vigoroso e nem chegava para ela com aquele apetite que o caracterizava. A prima recatada ocultava um vulcão reprimido pelo zelo à sua reputação, recobrava com o primo o tempo perdido. Portanto, o que este proporcionava em excesso a uma, faltava em quantidade e qualidade à outra.

Ele gostava das duas, justificou-se a cada uma. Não podia mais viver sem elas. Confessou às duas que estava sofrendo muito por não se decidir entre uma e outra, mas que elas tivessem paciência com aquela situação. Até quando conseguiria levá-las na conversa, era a questão.

E as duas moças, que nunca se viram na vida, apaixonadas pelo mesmo homem sofriam, um sofrimento contido em silêncio, um choramingo baixinho pelos cantos, um aperto no coração que não tinha fim. Sofriam por dividir seu homem sem desejar fazê-lo e eram inocentemente solidárias ao sofrimento dele por querer as duas, mas ter que se decidir por entre uma e outra. Como sofria aquele rapaz e ele remediava aquela agonia deixando os braços de uma e indo direto para os da outra.

Cansadas daquela sociedade na qual ele era o mais beneficiado, elas resolveram vingar-se. Parece até que tinham planejado juntas, embora tudo não passou de mera coincidência, coisa do instinto feminino de sobrevivência. Se ele podia ter as duas a seu bel-prazer, o que as impedia de fazer o mesmo? E como ele não lhes ocultara nada, elas foram, também, igualmente honestas. Tenho outro, cada uma anunciou ao seu modo, ainda que aquilo não passasse de mero ardil para forçá-lo a decidir-se. Elas só não esperavam pelo chilique que ele deu, ficou nervosinho, fez biquinho, bateu na parede, ameaçou a acabar com tudo, enfim, estava sendo traído descaradamente e sem o menor respeito aos seus sentimentos, as duas vigaristas. Só faltou dizer que ia tomar chumbinho!


Rio Vermelho, 07 de agosto de 2015



domingo, 21 de junho de 2015

O Velho Forte Como Uma Rocha

O velho patriarca era forte como uma rocha. E ele fazia questão de repetir isto com redobrado orgulho para quem quisesse ouvir. Sou forte como uma rocha, nunca tive um resfriado e ainda tenho todos os dentes. Vou fazer 84 anos. Em minha família, quando não se morre de câncer, se chega aos 100!

De fato, a longevidade e a boa saúde na família do patriarca era algo quase comprovado cientificamente, eles viviam muito mesmo. Um tio chegara aos 102 anos, outro acabara de fazer 99 e o irmão mais velho estava próximo da casa dos 90.

A receita para se viver tanto é não se preocupar com nada, ele ensinava. Quem pensa muito em morte, acaba morrendo antes da hora, dizia debochado.

O velho tinha muito dinheiro, mas era um mão de vaca. Guardava dinheiro como se fosse precisar dele no outro mundo. Ele só o gastava com o estritamente necessário, e não o dava para ninguém, nem para os filhos. Só quando eu morrer é que vocês vão ver a cor do meu dinheiro, ele dizia. Corria-se uma anedota na família que todo mês ele ia ao banco pedir ao gerente que lhe mostrasse o seu dinheiro. Este, então, punha tudo sobre a mesa à frente do velho que depois de admirá-lo maravilhado, mandava-o de volta ao cofre.

Além de sovina, o velho era um verdadeiro espírito de porco. Quero é dar muito trabalho pra a minha família antes de morrer. Vou dar muito trabalho antes de bater as botas, repetia com frequência. Os filhos e as noras ficavam horrorizados ante aquela promessa sombria. Se vocês acham que vão pôr fácil a mão no meu dinheiro, estão muito enganados.

Certa manhã, quis a divida Providência que ele fosse trabalhar no jardim. Enquanto revolvia a terra com uma pá, ele deu um espirro espalhafatoso que de tão forte, perdeu o equilíbrio e caiu de costas batendo a cabeça numa pedra. Morreu ali mesmo num piscar de olhos, não deu trabalho algum, graças a Deus!

Rio vermelho, 19 de junho de 2015.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Sábias Escolhas de Cada Um

Na papelaria do bairro, onde costumo comprar envelopes – porque sou antiquado e gosto de enviar os meus e-mails dentro de envelopes! – sou sempre atendido por uma moça sorridente de formas roliças e olhar rápido que se veste com esmero como se fosse gerente de banco. Muitos dos que ali entram devem imaginar tratar-se da proprietária. Entretanto, ela é, de fato, apenas a balconista. A outra mulher mais jovem que fica sentada numa mesa atrás do balcão e que se veste como se fosse à feira, é que é a verdadeira dona do lugar.

Minhas conversas com a vendedora nunca avançaram para além do necessário entre o freguês e a balconista, até o dia de ontem, quando a encontrei casualmente na rua a caminho do trabalho – ela que ia para o trabalho e eu comprar bananas. Cumprimentei-a como sempre faço quando encontro conhecidos na rua ao sair de casa e como tudo indicava que estávamos indo para a mesma direção, fomos conversando. Perguntei-lhe se era moradora do bairro e ela me explicou que passava uns dias aqui no Rio Vermelho e outro em Cajazeiras, um bairro para lá de Marraqueche. Fiquei curioso sobre a razão daquela dupla moradia e ela se adiantou explicando que o marido morava em Cajazeiras.

Como o meu silêncio denunciasse a minha surpresa, ela também me explicou que aquele era um acerto do casamento: unidos por Deus, mas cada um eu seu canto. Achei aquela solução muito prática e avançada. Quantos casamentos se dissolvem por causa da convivência incompatível, dizem amigos que se divorciaram. Considerei aquela uma escolha sábia e madura daquela balconista, a solução perfeita para um matrimonio feliz e duradouro. Quando a saudade aperta, ela vai até Cajazeiras ou ele é quem vem ao Rio Vermelho, ela disse. Ideia de gênio!

Às vezes um dos dois sugere morar juntos, como forma de economizar nas despesas. Mas terminam deixando a coisa como está, já está dando tanto certo. Aquele arranjo só funcionava tão bem porque eles não têm filhos, ela disse. “Preferimos ter um carro ao invés de filhos.” Olha aí outra sábia escolha!

Rio Vermelho, 3 de junho de 2015.




sábado, 23 de maio de 2015

Como é Bom Amar e Ser Amado

O senhor Bertoldo Gardelli amava os pássaros, razão pela qual havia tantos em sua casa e em variedade de tamanhos, tipos e cores. Ele não fazia distinção alguma entre um pequeno e desenxabido pardal e um exuberante pavão, por exemplo. Todos eram bem-vindos, desde que tivessem plumagem sobre o corpo. A presença de pássaros em seu lar era o motivo de sua satisfação e regozijo. Sua admiração por aquelas criaturas era tanta e a tal a ponto de ele chegar ao exagero de não permitir que estas fizessem parte do cardápio de sua família.

Eu imagino a expressão de censura do leitor ao presumir que o nosso personagem os tinha em cativeiro em sua casa, como fazem muitos dos que dizem gostar de pássaros. Muito pelo contrário, ele os amava tanto que os deixava ao seu arbítrio para partirem quando desejassem. Porque não é assim que se age quando se ama, deixando ao outro a escolha de ficar ou ir de embora?

A propriedade do senhor Bertoldo era rodeada por jardins com árvores de variados portes que faziam a alegria das aves. Todas as manhãs ele espalhava pelo lugar pedaços de frutas maduras e potes com água fresca e alpiste novo. Era este o segredo por haver tantos pássaros em sua casa. Eles vinham refestelar-se e, em retribuição ao anfitrião, alegravam a sua casa com seus cantos belos e gorjeios.

Certa vez, apareceu uma ave diferente de todas as que costumavam frequentar a casa do senhor Bertoldo. Esta não cantava ou emitia qualquer ruído agradável de se ouvir. Pelo contrário, a sua presença dificilmente evocava pensamentos agradáveis, havia até certo preconceito contra ela, razão pela qual ele, com o seu imenso coração, a acolheu como mais um filho. Sendo um bom conhecedor de pássaros, o senhor Bertoldo não teve dificuldade em identificar que aquele espécime tratava-se de um genuíno urubu.

Por que será que justamente um urubu veio pousar no meu quintal, ele se perguntou intrigado. Talvez ele estivesse com fome, concluiu. E como os urubus não são apreciadores de frutas ou alpiste, o senhor Bertoldo providenciou algumas pelancas frescas de carne de vaca para o seu inusitado visitante. E este gostou tanto daquela facilidade em obter alimento que na manhã seguinte estava lá de volta. Tantas foram as vezes que ele retornou por causa do farto alimento de qualidade que as suas visitas se tornam mais demoradas até o dia em que este resolveu estabelecer moradia ali mesmo pelo quintal do bom senhor Bertoldo.

No começo, a presença permanente de um urubu andando errante pelo quintal da casa surpreendeu os seus anfitriões. Mas como todas as coisas estranhas ao nosso cotidiano, cuja frequência nos leva a conviver pacificamente com elas, aquele urubu passou a fazer parte da vida doméstica da família Gardelli. De sorte que quando o senhor Bertoldo saía para a área externa da casa, o urubu vinha juntar-se a ele e o acompanhava como um cão, seguindo-o com seus passos desajeitados de ave. O senhor Bertoldo também se afeiçoou ao animal e gostava de sua companhia, razão pela qual, certo dia, ele resolveu batizar o bicho com um nome, passando a chamá-lo de Ferdinando Gardelli que também passou a ser o mais novo membro da família.

Rio Vermelho, 21 de maio de 2015.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

O Pai e a Educação de Uma Pequena Árvore

No meio da manhã de um dia nublado de semana, o pai trouxe o filho de apenas três anos à biblioteca do bairro. Entraram sem cerimônia na sala ao lado da escada onde mesas, cadeiras e estantes pareciam que tinham encolhido de tamanho e o colorido dos livros e suas divertidas ilustrações atraiam os olhos e as mãos da criança viva e curiosa.

Isto vinha acontecendo há semanas, quase meses, todas as manhãs o pai vinha trazer o filho à biblioteca como se o levasse à escola. E o menino perdera o acanhamento inicial ao lugar estranho, mostrava-se familiarizado com ele. Era melhor que o menino fizesse algo de útil ao invés de ficar em casa em frente à televisão, pensava o pai. As vezes o menino começava a se irritar com aquela inércia dentro de casa e punha a chorar sem motivo algum, coisa de criança. Sair um pouco de casa fazia bem tanto ao pai quanto ao filho.

Existia uma mãe e ela era escriturária no Fórum, tinha um trabalho que era para a vida toda. Já o pai, este estava desempregado há meses. Porém ele não se cansava de enviar currículos às empresas e de receber um não como resposta, muitas vezes nem isto. Era jovem, capaz, mas a sorte não acenava para o seu lado nos últimos tempos. Entretanto, ele era um otimista, as coisas vão melhorar, ele repetia confiante para si mesmo.

Aquela situação momentânea o conduziu para o serviço doméstico e ele se viu ocupando o lugar que era da esposa, cuidando da casa e do filho pequeno. Entretanto, isto não o fazia se sentir menor, pelo contrário, fazer aquele serviço doméstico o fez valorizar o trabalho de sua esposa e lembrar da vida dura que a mãe teve para criar seus seis irmãos. De agora em diante, mesmo estando trabalhando novamente, ele prometia a si mesmo, não iria se descuidar de dividir o trabalho de casa com a esposa.

O pai gostava da companhia do filho e de ir à biblioteca com ele. Escolhia um livro grande e ilustrado e com a sua ajuda ensinava ao pequeno a respeito das coisas da vida.

O menino via maravilhado a vaca na fazenda impressa na página do livro e dizia ao pai que a vaca era que dava o leite. O pai concordava com o filho e apontava para uma coisa estranha no milharal. Esta aqui é uma máquina para colher o milho, filho. Do milho se faz a farinha de milho que a mamãe faz cuscuz para a gente comer no café da manhã. O menino olhava para a colheitadeira sem entusiasmo, ele preferia ver os animais da fazenda. Papai eu já comi amendoim, ele disse. Amendoim deveria vir dar fazenda como o milho do qual se fazia o cuscuz, ele concluiu. O menino às vezes falava alto e o pai carinhosamente lhe ensinava que na biblioteca se falava baixo para não se incomodar os outros.

Para o pai era uma preocupação diária ficar desempregado com tantas contas para pagar. Para o filho, aqueles momentos com o pai lhe serviriam de uma boa recordação de sua infância quando fosse um adulto e tivesse seus próprios filhos para cuidar. O pai não tinha dinheiro para dar brinquedos ou comprar tênis novo para o menino, mas aquele tempo que dedicava ao filho valia mais que qualquer coisa que o dinheiro pudesse comprar.

Rio Vermelho, 13 de maio de 2015.



domingo, 3 de maio de 2015

Crônica de Um Buraco

Quando a chuva finalmente deu uma trégua depois de castigar a velha e tortuosa Salvador, a água suja arrastou para o bueiro vidas, sonhos e conquistas. A cidade mergulhou na tristeza e despertou no soteropolitano o espirito de solidariedade e compaixão.

Aqui no Rio Vermelho não houve desabamentos. Entretanto, um buraco se abriu num lado da minha rua. Nós moradores, esperamos pela prefeitura aparecer por iniciativa própria para fazer o devido reparo. Mas ela estava ocupada fazendo consertos mais urgentes pela cidade sucumbida pelo dilúvio. Não deu as caras depois de uma semana do nascimento do buraco.

Uma voz solicita e educada atendeu no número de serviço ao cliente da prefeitura. Anotou todas as informações para que a queixa fosse encaminhada ao departamento competente e a incompetência só veio ao final da conversa quando a mesma voz educada informava que não havia prazo para que o conserto fosse feito. Era um daqueles casos de se esperar sentado.

Enquanto aquele buraco crescia a olhos vistos, um ou outro motorista desatento conseguia a proeza de enfiar o carro lá dentro, apesar de a Rua Ilhéus ser residencial e trafegar-se aqui devagar. O buraco não era profundo, mas o carro não conseguia sair de lá sem a ajuda do reboque.

Enquanto isto, outro buraco surgiu não muito longe do primeiro. Este era menor, mas prometia crescer bastante. Então os carros vinham, desviavam-se do buraco júnior e caiam mais adiante no maior. Nada que pusesse a vida do motorista em risco, só a aporrinhação de ter de chamar um guindaste para sair dali.

Passada a segunda semana de existência do primeiro buraco, um vizinho entusiasmado por festas fez um churrasco para comemorar o seu aniversário, ao qual eu não pude deixar de comparecer, pois me agrada muito uma boca livre. Metade da largura da rua já estava tomada pelo buraco mais antigo e o mais jovem crescia em profundidade. Alguém teve a sábia ideia de pôr um galho de árvore com um pano branco amarrado na ponta e espetar no meio do buraco maior onde os motoristas costumavam se enfiar. Mas o nossa cratera parecia que tinha o magnetismo do Buraco Negro e continuava atraindo carros para o seu interior.

Finalmente, numa bela manhã nublada às vésperas do dia do trabalhado, apareceu uma equipe de operários. Mediram, fotografaram e até cheiraram os buracos, talvez como uma forma primitiva de identificar o seu dono. Em volta do buraco menor puseram estacas com fita amarela por medida de segurança. Presumi que não havia fita em quantidade suficiente para o buraco maior. Deixa pra lá, o importante é que a prefeitura já estava se mexendo.

E na manhã do dia seguinte, em pleno feriado, – esta turma não brinca em serviço! – levantei cedo como de costume, ouvi o movimento dos operários. Picaretas e pás não davam conta do serviço, trouxeram uma retroescavadeira! – procure no Google, nem eu sabia o que era isto. – Começaram pelo buraco menor que, apesar do seu raquitismo, era o mais problemático. Cavaram tão fundo que os operários precisaram de uma escada comprida para ir lá em baixo consertar um cano que se partira. Ao final, veio uma caçamba e despejou terra no buraco quando o sino da igreja avisava que já eram sete horas da noite. O serviço tinha terminado depois de mais de doze horas de duro trabalho.

Tomei a iniciativa de ir agradecer em meu nome e dos outros moradores aos operários pela dedicação e empenho de trabalhar no feriado, ainda mais que era o do dia do trabalho quando não se deveria mover nem uma palha. Indaguei quando viriam tapar o buraco maior. Nunca, me responderam com a cara mais limpa. Aquele outro buraco não lhes pertencia! Ele era responsabilidade de outro departamento. Ora bolas, em nossa kafkiana burocracia, cada departamento do governo tem o seu próprio buraco, mas a fonte que a financia é apenas uma, o ludibriado contribuinte. Pois bem, se até o próximo sábado não vierem tapar o buraco, quem ganha sou eu que não vou perder mais um churrasco comemorativo no vizinho!

Salvador, 2 de maio de 2015.


segunda-feira, 20 de abril de 2015

Visita ao Médico Americano

Eu costumava ter uma tosse miserável que me atacava uma vez por ano e cuja frequência era tão previsível quanto a vinda do carteiro com as contas de final de mês. Ela chegava de mansinho e sem nenhum alarde num final de tarde. Uma tosse seca, discreta e ocasional que depois se tornava intermitente e espalhafatosa. Sua intensidade era de tal forma que às vezes eu jurava que podia cuspir os pulmões pela boca. Meus rins doíam de tanto esforço que eu fazia para tossir, a voz sumia. Tudo escurecia à minha frente quando eu era acometido de uma crise de tosse e eu só conseguia ver ao longe a imagem do Criador me chamando para junto dele. E ela durava semanas, meses até o dia em que eu ia me arrastando até um médico para que ele me entupisse de antibióticos e corticoides. Mas o que me curava mesmo era um bom banho de folhas arruda. Aquilo só podia ser mau-olhado.

Esta tosse surgiu pela primeira vez em minha vida quando eu era ainda adolescente. Eu tinha ido passar um fim de semana com amigos num sítio. Imaginem o risco que era deixar um bando de adolescentes por conta própria numa casa do meio do mato. Veio no grupo a linda irmã da namorada de um amigo por quem fiquei de queixo caído. Aquela doçura quase não abria a boca para falar de tão tímida que era. Mas ao contrário do que se podia esperar de uma garota tão acanhada, ela tinha uma tremenda de uma má fama! Fiquei fascinado. Aquilo era uma verdadeira tentação para um garoto de 17 anos cheio da energia causada pelos hormônios que ferviam nas veias. Por certo eu fui averiguar a veracidade das fofocas e fiquei encantado de me certificar que realmente aquela pestinha muda fazia jus à sua má fama! Fizemos “ósadia” até altas horas na noite numa rede que ficava num canto escuro da varanda. – A minha geração não transava com a facilidade que se faz hoje, só comíamos pelas beiradas. – Aquela atividade toda me deixou com calor, mesmo estando uma noite fria. Pus na cabeça que tinha de tomar um banho às 3 da madrugada. Era inverno e não havia água quente na casa, mas me meti debaixo do chuveiro mesmo assim. Depois daquele banho gelado a minha famosa tosse apareceu pela primeira vez.

Eu estava passeando nos Estados Unidos quando tive uma dessas temporadas de tosses e, assustada com as minhas crises, uma amiga me levou a um médico da cidade. Enquanto aguardávamos a minha vez, eu me distraía folheando as revistas velhas da sala de espera. As cadeiras eram antigas, feitas de madeira sólida e desconfortáveis. Mas não demorou muito para eu ser chamado.

O doutor Collins deveria ter uns setenta e poucos anos e era um pouco baixo e gordo. Possuía uma barriga dura e saliente que parecia maior por baixo do jaleco branco. Os cabelos eram todos brancos e brilhavam, eram curtos e ralos. Seu olhar era doce e seus modos afáveis. E ele gostava muito charutos. Eu podia dizer isto com absoluta certeza porque ele me recebeu para a consulta tendo um soltando fumaça entre os dedos da mão. Eu já tinha visto muita coisa nesta vida, e aquela era uma das que ainda me faltava ver.

Ele me perguntou qual o motivo da visita. Eu tive ímpetos de contar-lhe toda aquela história da origem da minha tosse, do meu encantamento por uma menina tímida e mal falada, do nosso rala-e-rola na rede e do banho gelado que tomei imprudentemente numa noite de inverno depois de ter suado muito. Mas eu simplesmente lhe respondi que estava tossindo.

Ele me olhou com um olhar analítico e mandou eu abrir bem a boca e colocar a língua para fora para examinar a minha garganta. Depois auscultou os meus pulmões e me mandou tossir. Essa parte foi bem fácil de fazer porque agora o charuto estava na boca e ele o tragava com prazer soltando baforadas por entre os dentes como um dragão. A fumaça se espalhou pela a pequena sala e me sufocou.  Ninguém precisava estar doente para tossir numa situação como aquela. Eu tossi à vontade e o médico deu finalmente um diagnóstico: o senhor tem uma tosse. Eu fiquei aliviado de ter ido procurar um profissional, pois, do contrário, eu jamais teria chegado a tal brilhante conclusão. E me prescreveu apenas um xarope. Aos sair do consultório, eu fiquei me perguntando onde eu conseguiria um bom banho de folhas de arruda na pequena Springfield, Colorado.


Rio Vermelho, 15 de abril de 2015.

domingo, 12 de abril de 2015

O Cego e a Moça dos Correios

A moça. Chamava-se Claudete e possuía bonitos cabelos crespos e longos os quais mantinha sempre bem cuidados. E o seu corpo era de tal formosura que provocava nos homens olhares e pensamentos maliciosos. Ao caminhar na rua, por exemplo, não havia cristão que resistisse em virar para trás só para dar uma conferida naquela bunda que não era nem muito grande e nem muito pequena, cuja carne era firme e parecia uma fruta no ponto para ser comida. Mas o que mais chamava a atenção para aquela moça, era a sua feiura. Ela era tão feia que causava compaixão.

O rosto era de um formato peculiar. Começava largo abaixo de uma testa arredondada e depois ia se estreitando até chegar no queixo, terminando abruptamente quando se esperava que chegasse até o fim. Os olhos grandes e escuros eram muito afastados, tendo ao meio um nariz largo e torto como o de um lutador de boxe. E ao encarar os homens, ela o fazia com a expressão de uma galinha que ia pôr um ovo e depois mudou de ideia.

No entanto, Claudete era possuidora de uma autoconfiança que faltava em muita mulher bonita. Ela andava com a cabeça erguida e passos decididos como fosse a rainha da cocada preta. Aquela sua atitude segura de si compensava a sua feiura, fazendo os homens esquecerem daquilo depois do primeiro choque.

O cego.  Ele era um cego como qualquer outro que não enxerga e faz uso de bengala branca para se locomover. Ele trabalhava como segurança de uma loja de ração para cães e gatos na rua do canal, onde ficava sentado num banquinho do lado de fora ao lado da entrada evitando que a loja fosse assaltada. Ele tinha uns sessenta e poucos anos de idade e ia trabalhar vestindo calça jeans e camisa de mangas compridas bem passada além de óculos escuros tipo Ray Ban.

Certo dia, Claudete, que trabalhava na agência dos Correios, precisou ir até a rua do canal para fazer uma compra. Durante o percurso feito a pé, passou por homens que lhe prestaram a devida homenagem ao admirar a sua formosa bunda. Como eu já dissera antes, a moça era feia, mas nem tudo era de se desprezar.

Ao passar em frente à loja onde o cego trabalhava, ele pareceu indiferente quando a moça cruzou a sua frente. Só alguns segundos depois de Claudete ter passado, ele virou a cabeça discretamente e baixou os óculos escuros para poder ver melhor aquele presente de Deus. Dir-se-ia, que a sua bunda era de tal perfeição que até cego a admirava!

Rio Vermelho, 09 de abril de 2015.


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Sem Querer Passar Recibo Pra Ladrão

Uma amiga resolveu que já era hora de ela ter o seu primeiro smartphone, apesar desta geringonça estar à venda há mais de duas décadas. Eu não a julgo, eu mesmo só adquiri o meu outro dia e, como eu já previra, o pequeno telefone inteligente não tem muita serventia para mim.  Por isso que passa a maior parte de seu tempo útil desligado na gaveta, como também já acontecia com o meu velho celular peba. Passo muito bem sem estes aparelhos, raramente tenho assuntos urgentes para tratar que não possam ser resolvidos pelo antiquado telefone fixo.

Depois de viver a angústia de ter de optar por ter ou não um smartphone, a sua aflição seguinte foi escolher qual modelo adquirir. São tantas as marcas disponíveis no mercado e variedade de modelos e cores oferecida por cada uma que fazer uma escolha pode se tornar num assunto para a próxima sessão de psicanálise. A grande agonia do homem moderno é ter de fazer tantas escolhas em seu cotidiano e escolher um aparelho de smartphone veio juntar-se a elas. Entretanto, ela não passou pela angustia de escolher uma operadora, pois já vivera esta experiência anos antes quando adquiriu o seu primeiro aparelho de celular. Desta, ela estava livre!

Feito sua a sua pesquisa, ela foi na loja comprar o seu aparelho. Esta parte de sua aventura foi bem mais breve, pois ela já sabia exatamente o que queria. Antes de concluir a transação, no entanto, o vendedor lhe ofereceu um seguro. Não se tratava de um desses que estendem por mais um ou dois anos a garantia de assistência técnica do produto. Com a mesma serenidade com que ofereceria um acessório como uma capa para o aparelho ou carregador mais rápido, o vendedor lhe oferecia um seguro contra roubo!

Vejam a que ponto chegamos. A numero crescente de assaltos é tamanha e a voracidade dos ladrões por smartphones é tanta que criou-se uma indústria paralela para este novo e promissor mercado que é a indústria dos seguros contra roubo de aparelhos celulares. Ser assaltado já faz de tal forma parte de nosso cotidiano que as pessoas nem se indignam mais quando são vítimas desta agressão, recorrem a um seguro contra roubo com a naturalidade de quem tivesse comprado um acessório indispensável para fazer o bichinho funcionar. O descontrole é tamanho que autoridades policiais até sugerem aos cidadãos honestos e pagadores de impostos que andem com certa quantia de dinheiro no bolso para agradar ao assaltante em caso de roubo, além de ter dois aparelhos à mão, um velho para dar ao meliante.

Minha amiga ficou desconcertada com a tal oferta. Achou aquilo descabido, preferiu o risco de engrossar as estatísticas que apontam os smartphones como o preferido dos bandidos. Não quero isso, ela disse indignada deixando o vendedor surpreso, não vou passar recibo pra ladrão!

Rio Vermelho, 15 de janeiro de 2015.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

A Bala da Felicidade

O Sr. Aurelino era conhecido pelo seu crônico mau humor e por sua falta de cortesia ao tratar os que entravam em sua mercearia. E esbouçar um sorriso aos que ele atendia ao balcão, isto, então, nem se fala. Resmungava ao respondê-los, às vezes tinha de repetir para ser entendido. Apesar deste seu azedume, a freguesia não deixava de ir comprar em sua loja, não porque os seus preços compensassem o tratamento rude, mas porque esta era a única das redondezas.

Nas últimas duas semanas, entretanto, algo inédito acontecia naquela sombria loja, motivando comentários impressionados e maldosos de sua fiel clientela. Ao entrar na mercearia de seu Aurelino, o freguês era saudado com um largo sorriso do proprietário e tratamentos corteses de “bom dia!” e “como tem passado?”.

Uns achavam que ele finalmente houvesse tomado vergonha na cara e frequentado um curso de boas maneiras para tratar o cliente. Outros comentavam que talvez ele estivesse tomando um desses remédios modernos que mudam a personalidade da pessoa e que fazem elas ficarem alegres o dia todo. Outros apostavam que ele tinha ganhado uma bela de uma herança. Ou que aquele seu repentino estado de bom humor era o resultado de ele ter batido com a cabeça numa queda. Mas nenhuma daquelas especulações explicava realmente o motivo da mudança de comportamento de seu Aurelino e nem por isso as pessoas deixavam de comentar e de fazer suposições, o que, aliás, é próprio do gênero humano.

Imaginem, o seu Aureliano agora ouvia música no rádio, assobiava, até cantarolava! A loja estava mais arrumada. Saltava aos olhos que o chão tinha sido lavado, as mercadorias espanadas e colocadas ordenadamente nas prateleiras. As teias de ranhas nos cantos tinham sumido finalmente. Talvez alguém tivesse encomendado um despacho para que ele se transformasse num cidadão simpático. E o feitiço tinha dado certo! Fosse o que fosse, todos estavam satisfeitos com tal mudança e felizes por saber que algo de bom estava provavelmente acontecendo em sua vida.

Certo dia, um velho veio até a loja. Depois dos tratamentos cordiais que agora o comerciante dispensava à freguesia, ele abriu a gaveta por trás do balcão para guardar o dinheiro e de lá tirou um pequeno objeto.

— Tome aqui uma bala para adoçar o seu dia. – ele disse ao tirar um comprimido da cartela em sua mão e passando-o ao freguês. Acrescentou: – Eu tomo um desses todos os dias e não falha nunca!

O velho retribuiu a gentileza com um sorriso de felicidade, parecia uma criança que tinha acabado de ganhar um doce. Ele jamais tinha visto um daqueles antes, mas certamente já ouvira falar dos poderes milagrosos do Viagra!


Rio Vermelho, 1 de janeiro de 2015.