quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A Sereia de Copacabana


Outro dia vi o filme 'A sereia e o monge' que fez me recordar de um fato inusitado, embora nenhum deles tenha a menor correlação ou semelhança. É em engraçado como a mente da gente às vezes nos arrasta ao passado, despertada apenas por um fragmento de frase ou imagem. Este episódio se deu no Rio de Janeiro, no período em que morei provisoriamente em Copacabana, enquanto enfrentava uma dura maratona procurando um apartamento para alugar. Não era jogo fácil, acreditem. Eu visitava com um jornal as ofertas, nos fins-de-semana, e ao correr até a imobiliária para fechar o negócio, na segunda-feira, alguém já tinha chegado à minha frente. No final desta disputa, que durou seis meses, eu já conhecia a zona sul e norte como nenhum carioca!

Ao chegar em casa vindo do trabalho certa noite, tomei um banho e sai de novo para jantar, como de costume. A noite fresca e tranqüila de uma terça-feira convidava a um passeio na orla seguido de um chope antes da refeição. Depois, iria ver um filme num cinema perto de casa. Em Copacabana, o que não faltam são bons lugares para comer, além dos disputados botecos das esquinas com suas ofertas a preços módicos, sucos de frutas frescas, sanduíches e pratos feitos. Ainda assim, eu optava pelos restaurantes. Queria o conforto do ar condicionado, de sentar à mesa para ser servido por um garçom à tradicional, de jaqueta branca e gravata borboleta preta. Como eu ia quase sempre desacompanhado, e não queria esperar muito para ser servido, eu tinha o cuidado de escolher restaurantes com poucos fregueses. Como nestes lugares os garçons ficavam ociosos, eu aproveitava para puxar conversa. Barmans e motoristas de taxi também tinham sua vez. Caminhei até a Avenida Atlântica, onde fica a orla, e aportei num daqueles restaurantes do calçadão. No Rio, estes lugares são tradicionais e existem há décadas. Seus velhos garçons confundem-se com o mobiliário e por aparentarem terem inaugurado o estabelecimento, nos olham com desdém. Os restaurantes são geralmente de propriedade de portugueses, e tem em comum o fato de oferecerem exatamente o mesmo cardápio, uma longa lista de escolhas que faz agente se perder! Nesta noite, escolhi um lugar a poucas quadras de casa, sentei numa mesa ao ar livre para curtir a suave brisa do mar e pedi um chope.

Percebi que numa mesa próxima à minha estava sentada outra alma solitária que me olhava insistentemente e sorrindo com demasiada simpatia. Fiquei desconfiado, mas sorri de volta. Isto foi suficiente para lhe encorajar a vir puxar uma cadeira e sentar-se à minha mesa com seu copo de chope.

- Eu vi que o senhor estava olhando pra mim. - disse depois de acomodar-se.

A situação era justamente o oposto, mas, por delicadeza, não quis desmentir a moça. Sua voz era aguda e num tom discreto.

- A noite está agradável para tomar um chopinho no calçadão, não é mesmo? - disse por falta de coisa melhor para falar.

- O senhor está passeando no Rio? - deu um gole no chope e sorriu mais uma vez.

Seu vestido era um desses cujo tecido gruda no corpo e era estampado com grandes flores roxas e amarelas. Vestidos assim não ficam bem em cheinhas feito ela. O rosto era arredondado. Ela estava bem à vontade.

- Não. Sou morador, mesmo. Tenho cara de turista?

- Este sotaque não é daqui... - meneou com a cabeça. Parecia que queria me enfeitiçar.

Sua pele era oleosa e parda como a minha, porém um pouco mais queimada, provavelmente por costumar ir à praia. Do lado esquerdo do rosto abaixo do olho havia uma mancha mais escura. Um sinal de nascença talvez. Deveria ter a metade de minha idade.

- Isto é porque eu sou de Salvador.

- Ah! Logo vi. Baiano fala engraçado. - sorriu mais uma vez. Talvez fosse um tique nervoso. Sua mão brincava com um papelzinho de bala.

Contrastando com a pele escura, seu cabelo era longo e tingido de louro, tinha um tom pesado e artificial. O Rio é cheio de falsas louras. Uma delas estava em minha mesa lançando-me sorrisos.

- Na verdade, nem sou baiano. Nasci em Fortaleza. Moro em Salvador desde os dois anos de idade. Você é carioca?

- Sou do Pará. -fez uma pequena pausa enquanto pensava na próxima pergunta. - Trabalha com o que? - puxou a cadeira para mais próximo, para colocar o braço e apoiar a cabeça sobre a palma da mão.

Eu não me importo com perguntas pessoais. Quem pergunta é porque está curioso a meu respeito. Acho natural, ainda mais vindo de uma mulher. Como não tenho nada a esconder, respondo candidamente. Não me perguntando meus dados bancários e a senha do cartão, eu respondo qualquer coisa.

- Trabalho com viagens. - meu trabalho relacionava-se a viagens mas, era um pouco mais complicado que isto, tive preguiça de explicar.

- Adoro viajar. Já esteve no Pará? - examinava-me com seus grandes olhos castanhos e pouca maquiagem.

No geral, ela era desprovida de atrativos. Mas sabia ser agradável e simpática. Sua feiúra não lhe intimidava, ao contrário, demonstrava ser bem segura. Eu admiro pessoas que convivem bem consigo mesmas e não se deixam abater pelos padrões de beleza de revistas de moda.

- Não, nunca. E você, faz o que? - era minha vez de interrogar.

- Trabalho na noite. - respondeu naturalmente.

- Como assim? - fiquei curioso. Ela poderia ser uma pesquisadora noturna do IBGE fazendo o senso àquela hora.

- Sou garota de programa. - sorriu timidamente desviando levemente o olhar.

Achei divertida a situação. Nunca me acontecera nada igual. Agora tudo fazia sentido. Claro, eu estava na Avenida Atlântica, lugar mais democrático que há. Famílias, turistas, aposentados, vendedores ambulantes, ladrões, putas e cafetões convivem harmoniosamente desfrutando as ondas do mar e o passeio no calçadão. Alias, existe uma relação simbiótica entre turistas masculinos e prostitutas. Onde um está, o outro vai atrás.

- Que interessante. - eu realmente não sabia o que dizer. - Muito trabalho?

- Mais ou menos. A concorrência está braba.

Continuamos a conversa sobre as dificuldades do mercado. As taxas cobradas. A clientela internacional. Depois passamos a falar sobre comidas de sua região. Eu já tinha provado alguma coisa do norte num restaurante perto do escritório. Acho que comi o tacacá e o achei abominável. Sua receita leva um vegetal da floresta que deixa a língua grossa e dormente. Foi nesse instante que ela aproveitou a deixa e me perguntou.

- Você já comeu uma paraense?

- Não, nunca. - respondi surpreso.

- Não sabe o que está perdendo! - falou convencida.

Naquela noite eu só estava disposto a comer um 'peixe delícia'. É um filé de peixe da água do mar grelhado na manteiga com purê de batata e bananas empanadas. É uma delicia mesmo! Ela recebeu meu desinteresse pela oferta da iguaria paraense com humor. Talvez, ao contrário sobre o que eu dissera antes sobre o filme, a situação tinha mesmo alguma relação. Ela era a sereia e eu o monge. Depois de algum tempo de conversa jogada fora e algumas risadas, a moça, que nunca disse seu nome, levantou-se e se despediu educadamente. Saiu desfilando pelo calçadão de Copacabana balançando gentilmente os quadris e os cabelos loiros como o ouro, na esperança de enfeitiçar algum marinheiro em visita à Cidade Maravilhosa.

Rio Vermelho, 12 de novembro de 2008.








Um comentário:

Jota Fagner disse...

Quase quase, hein? Eu também já tive algumas desventuras na época em que fazia faculdade lá. O povo fluminense é bastante receptivo, mas é sempre interessante encontrar alguém que seja ao menos um pouco exótico no sentido etimológico da palavra.
Essas tuas aventuras dariam facilmente um conto de Jorge, ilustrado pelo mestre Floriano.
Abração!