quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

A hóstia imperfeita

Ela tinha obsessão por perfeição. E quando foi morar na nova casa, no primeiro dia do ano, ficou feliz ao ver novamente a simetria de sua faixada. Era quadrada com duas janelas igualmente quadradas e uma porta de duas bandas no meio. As paredes eram impecavelmente brancas e iria mantê-las assim, resolveu não pendurar nem mesmo um calendário. Havia um pequeno jardim na frente, ou melhor, um gramado bem cuidado. Nos fundos, o quintal era maior do que poderia desejar, ainda não tinha ideia do que fazer com ele. A casa era um pouco grande para ela, que só tinha a companhia de um gato, mas ela preferia assim. Um cão aproveitaria melhor o espaço do quintal, gostavam de correr e cavar, mas gato era animal de ficar dentro de casa, e o dela reencontrou o seu lugar embaixo de uma antiga cadeira de palhinha. No antigo apartamento, a cadeira servia de abrigo para ele, e não foi diferente na nova moradia. Defronte da casa havia uma igreja e isto deu a ela o que pensar.

Quando foi a última vez que fui a uma missa?, se perguntou. Porém não encontrou resposta. Já fazia tanto tempo... Estava começando uma vida nova e talvez reencontrar-se com Deus fosse uma ótima mudança. Estava resolvido, iria todos os domingos à missa. Era só atravessar a rua. Aquela seria uma de suas resoluções do novo ano que começava.

Passou o resto da semana arrumando a casa, colocando as coisas no lugar, ao seu jeito. Depois que terminou, fez uma rápida faxina e deu-se por satisfeita. No domingo, acordou cedo, fez o café e tomou-o na mesa da cozinha, ao lado da janela que dava para o quintal. Os pássaros cantavam e se amontoaram em volta de uma casca de mamão posta sobre uma banqueta. Quando, no apartamento no centro da cidade, recebera tão ilustres visitas?, se perguntou. Jamais.

Depois de tomar o café, apressou-se para não chegar atrasada à missa. Era a primeira missa do ano e a igreja estava cheia. Mesmo assim, encontrou um lugar na ponta de um banco. Logo em seguida, a missa começou.

Ficou feliz de se lembrar de todas as rezas e lhe pareceu que a missa continuava do mesmo modo como se lembrava, apesar de que hoje em dia o repertório de músicas era mais moderno. As músicas eram bonitas e iria memorizá-las para a próxima missa.

Quando chegou a vez da Comunhão, aquele momento em que se vai para uma fila, com uma expressão contrita, e abre-se a boca diante do sacerdote, para receber a hóstia. Ela levantou-se e foi tomar um lugar na fila. Quando chegou a sua vez, no momento em que o padre pegou uma hóstia, ela percebeu que algo não estava de seu agrado. A hóstia estava rachada ao meio, porém ainda inteira, e faltava-lhe um imperceptível pedaço. Aquela imperfeição a incomodou. Tentou não dar importância, mas foi-lhe impossível. A boca, que estava aberta para recebê-la, se fechou abruptamente, para surpresa do padre que não compreendeu o gesto.

— Será que o senhor poderia trocar esta hóstia por uma que esteja... inteira? – ela perguntou ao padre, desconcertada.

— Minha filha, você fez a Primeira Comunhão? – perguntou o padre, com um olhar severo.
— Não – ela respondeu, constrangida.

— Então volte para o seu lugar e depois teremos uma conversa séria – disse o padre, negando-lhe a hóstia.

Sentindo-se humilhada, ela voltou para o banco e ficou cabisbaixa o resto da missa. Podia sentir o peso dos olhares dos outros fiéis sobre ela. Mas era só trocar a hóstia, recriminava o padre. Depois daquele domingo, nunca mais voltou à missa.


Rio Vermelho, 1 de janeiro de 2020.


Nota: Incentive o trabalho do escritor, deixando um comentário. Obrigado!







Um comentário:

José Fagner Alves Santos disse...

Havia tempos que eu não dava as caras por aqui. Muito boa a crônica. Feliz 2020 para você.